21.9.10

Descida ao Vale

Passeios a meio da tarde de Verão
O choque era tão forte entre o alpendre e o vácuo
Que saltavam as lágrimas
Caminho pelo alcatrão ao longo do muro de tijolo antigo
Os  rabos de garrafas agarradas ao betão
Imagino os braços esfacelados todas as veias cortadas
O sangue secando ao sol sem alguém que me ampare
Aguardo mais à frente à sombra da pesada figueira
Que apoia os seus braços carregados de figos no muro
Vou reparando nos tijolos carcomidos em pó e nos podres ocos que abrem
Imagino a derrocada lenta como as ondas de calor
E entretanto intrigo-me com os papéis de rebuçados
À beira duma Ford Transit branca e numas cuecas
De miúdas rendas ressequidas pela abrasão violenta
Do Verão.

Atravesso uma estrada a escaldar
Meto-me pelo baldio de terra seca e palha seca
Sinto a garganta seca e as narinas têm dificuldade
Em ventilar o cérebro. Sinto o pó colar-se ao suor
Dos tornozelos sem meias. As cigarras serram o horizonte
Numa berraria infernal o sol pesa nas sobrancelhas e nos ombros
Apalpo os ossos dos braços, parece que fui chupadinho pelo demónio
Começo a descer uma encosta plantada cientificamente de pinheiros
À esquerda e à direita abrem-se alas
De pinheiros em que a terra é mais fofa e alta
Trepo para um desses desvios, o calor é ainda mais intenso
Apesar de não passar aqui ninguém escondo-me para mijar
Oiço os borbotões do meu mijo na terra poeirenta
E oiço uma cobra arrastar-se no limite da galeria

Continuo a descida
Cansa andar sempre a travar o peso que se nos quer cair
O caminho pedregoso resvala a cada passo
A vegetação adensa-se agora mais perto do rio
Existem aqui placas para um acampamento de holandeses
Sempre imaginei o local como um refúgio de depravação

Vejo me sempre tão belo
Como um vulto em que ninguém repara mas que devia
Deviam reparar mais em mim, nos meus gestos, nas minhas palavras
Consolo-me por ao menos alguém notar nos meus passos: eu próprio
 As silvas agarram-me o corpo como fãs sedentas de sangue

Zé Chove

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