19.11.09

Bernanos


Tardes

Magoa pensar no tempo passado, tanto desperdício de horas. Não precisávamos de falar e não falámos, mas o olhar, sim o conforto vem do olhar mais que da palavra e se não nos apercebemos dum brilho ainda que fugaz é porque morreu.

Sentados no sofá lado a lado assistiamos ao cair do tempo nas partículas de pó que dançam nos feixes de luz. Apredendemos todas as estrias do veludo do sofá, no fundo a única rectidão confortável. Explico, não existem vidas canalizadas, fluímos a céu aberto como as águas pela montanha, a cloaca máxima comunitária fede.

Eternamente contemplamos um corpo, durante a eternidade que em dadas alturas nos sufoca a lei da carne. Orgulhosamente cravamos os troféus no nosso peito desnudado, consagramo-nos com a efusão de sangue na solidão das altas montanhas do Orgulho. Humildemente permitimos que se dessedentem nos rios do nosso sangue sacrificial.

Ao final da tarde arrastamo-nos até à cozinha que o ventre reclama, o fiel revoltado. Que simplicidade admirável não tem o estômago dirão alguns, para outros é uma criança caprichosa.

A materialidade da casa acaba por ser o emboço do nosso caráter: aqueles azulejos, aquele tapete, determinada pedra, a largura das janelas... A cozinha é um Fogo, o fogo do lugar, não um Fogo como o da Sala. O Fogo é o crisol da tradição.

Uma chaleira enegrecida, umas mãos que remexem os tições directamente, um sopro que aviva as chamas.

A ressonância do sino ao longe. Irrompem as Vésperas.

Instintos

Deixámos todos os portos do mundo vazios e não nos lembramos em qual despejámos o sentimento. Os cães escanzelados que se coçam demasiado nas docas ainda poisam um olhar vazio enquanto partimos mas nem um latir do coração. O instinto é precoce: os cães amadurecem sobre uma cadela poucos dias depois do primeiro osso. O que se faz ao mar é precoce por natureza.

O Sangue

O sangue vertido sobre a terra cultivada nunca tem o mesmo impacto do que aquele vertido sobre a neve ou sobre o mármore dum palácio. É sofregamente absorvido e as árvores esquecem.

Diário de Bordo I

Até então só viajara no mar em traineiras pesqueiras. Partia de Setúbal em direcção ao sul. Rondávamos sempre os 20, 25. Largávamos o porto por volta das 4 e 30. Preparávamos a bomboca ao largo de Tróia. O mar e o céu não se distinguem do negrume. O frenesim inicial do reencontro com o mar e parceiros, o reboliço das tralhas, lancheiras, canas, agasalhos, estojos de iscos e puxadas vai esmorecendo à medida que as luzes sadinas mergulham na escuridão. Alguns descem ao porão de duas liteiras para ferrar o galho.
O mestre tem um sotaque rasgadamente setubalense. As manápulas destacam-se da sua alta fisionamia.
Puxadas triplas, carretos de recuperação rápida, alumínio e fibra, ameijoa, camarão, ganso, as geleiras escancaradas, “o camaroeiro”, lugares marcados, mini prateleiras atulhadas de isco...

Tomás Manso

Fim da Exibição

De peito cheio percorro a alameda. O queixo ligeiramente levantado, os ombros gingãos e a leveza de espírito. Tão cheio e tão leve... escorrego na relva húmida. Um segundo; a mão que sai em defesa aparasse num cagalhão com aparência de salsicha e consistência de diospiro. O adónis perde a parra. Fechem as portas do museu.

Filipe Elites

16.11.09

Lisboa Romântica VII
















Doliver D

Profecias

Na segunda sessão profetizou o início da idade do ócio. Como estado livre e alegremente procurado. Com o advento do Progresso Automatizado o homem deixará de pensar no futuro absolutamente confiado de que o melhor possível lhe será dado pela Máquina. A Máquina não é racional, a Máquina não é passional. A Máquina é Estatítica. No número depositámos a nossa confiança com carácter de Fé. Seremos embalados porque não haverá Injustiça...

Filipe Elites

Vilas e Ovelhas VIII

Não sinto a fibra da vossa cepa. Sois moles. Adiais qualquer projecto possível em nome da liberdade. Transformasteis o conceito de liberdade em pura negação. Sois uns verdadeiros bandalhos. Não desvieis o olhar – ainda tenho força para vos aviar dois tabefes nessas caras imberbes.

Ia caindo no caminho. Decidi atalhar e escorreguei em direcção ao poço velho. Ah! Ah! Esfolei-me aqui na barriga, de lado. Ao atravessar o rio ouvi vozes perto da mini-hídrica mas não vi ninguém. Nunca mais arrancam as obras lá em cima na serra.

Depois dum osso partido vai-se ao endireita e só depois ao hostital. Da última vez cheguei lá de cotovelo inchado. Espetou uma agulhas na batata. Uma aguadilha morna fluiu das perfuradelas. Fico sempre maravilhado com as suas rezas enquanto enfaixa os doentes.

Havia um sentido épico dado a toda a vida que se perdeu no dia em que passamos a considerar a importância do minuto. A urgência é anis escarchado numa garrafeira fechada numa sala duma matrona quarentona, enjoa de tão doce.

Passámos à sala de jantar. Ajudei a transportar a travessa do arroz de pato. Vimo-nos entre a tropa que vicia o ar da casa. Atravessamos o ar leves com o pensamento preso um no outro.

Sim casei por dinheiro. Ninguém toma uma decisão destas dum momento pró outro. É um crescendo e os sentimentos de culpa vão sendo mitigados pelo embotamento de acções anteriores.

Fui viajar por ocasião da venda dum apartamento duma que recebi em herança duma tia afastada.
O apartamento fica numa antiga vila oprária na cidade de L... Ao fundo do corredor que estrutura a vila fica uma antiga fábrica

Vilas e Ovelhas Ranhosas VII

Húmus e morte. Evolado entre os troncos húmidos da floresta prossegue a história. Depois de horas sem vermos o sol de olhos postos no lodo, na companhia silenciosa dos espíritos chegamos. Uma casa perdida entre as árvores. Os ramos das árvores mais altas invadem as janelas e as silvas arrombam as portas.

Duas meninas sentadas placidamente no chão da sala olham sem expressão o padre. No compartimento contíguo vislumbra-se através de um postigo o dorso acinzentado dum cavalo.

‘Tarde
Boa Tarde
Sente-se
Quando é que o seu marido morreu?

As laranjas já foram a nossa riqueza.

Se um homem desisti ninguém lhe vem pedir contas. O que nos atormenta é ver os outros arriscarem os passos fora do caminho.
Assava umas batatas no fogo espetadas num arrame grosso. Fazia massa de pão. A massa colada torna os dedos mais grossos. Uma bola esparramada sobre o calhau de granito aquecido todo o dia junto ao fogo. Azeite e louro.

Quem me pode levantar agora? Se a fonte greta poderá o rio que corre a jusante com todo o seu caudal voltar a trás e reanimá-la? Mas vai desesperar não passou já a sua hora? Será indigna a retirada sem nada mais que dar. O esbanjamento não será por ventura a maior glória? Mas gloriamo-nos das nossas represas fétidas de águas paradas. Oiços passos absurdos na estafada mãe d’água e choro com semelhante entrega.

Corda-Bamba


Vilas e Ovelhas Ranhosas VI

Facilmente me encontro perto do choro. Reprimo as lágrimas perante as maiores alegrias e tristezas dos outros, não suporto que me descubram lágrimas nos olhos, só ia piorar. A minha vida não me provoca qualquer emoção.

Andámos perdidos horas e horas entre as árvores e montanhas. Junto aos rios a vegetação é mais feroz e os espinhos reclamam pela carne. Os leitos de rios mortos escondem serpentes entre o lodo. Se largamos o rio as escarpas tornam-se abruptas. Aguçadadas como lâminas.

Tou tão doente. Acho que vou morrer. Senti-me virado ao contrário com os repelões dos vómitos no caminho para casa. Os olhos brilhantes da febre, a palidez da pele, as costas recurvadas do peso da cabeça devem ter provocado a compaixão das velhas com quem me cruzei no metro.
Maldito caril estragado. Atacas como um vírus aspirando-me as forças.

Não que nunca tivesse pensado na morte. Quem é que nunca pensou?

Olhou-me como se já nos conhecêssemos com uma insistência desusada entre os que andamos a pé pelas calçadas da cidade. Algo nos une. As mesmas fraquezas dão semelhantes tremuras nas pálpebras dos olhos ou tiques nas mãos idênticos, por vezes a mesma cadência cautelosa no respirar.

Partilhamos as mesmas revoltas interiores desde sempre e o nosso coração sempre se encavalitou do mesmo lado da amurada.

Vilas e Ovelhas Ranhosas V

As sopas grossas eram o verdadeiro brasão da casa.

Nem é meu hábito mas gritei-lhe “não, não é o tédio. O nosso verdadeiro problema é a preguiça. Uma preguiça básica. Não uma preguiça astuta. Uma preguiça dengosa que molda as pessoas como dois corpos metálicos incandescentes. A busca gulosa da satisfação a dois iliba-nos a consciência. Imagina todo um povo...” Sentia o corpo tremer de indignação e vergonha pela exaltação. Nunca fui de extremar opiniões. Sempre alimentei uma certa tepidez nas relações. Tentei olhar humildemente para o chão em busca do perdão pela ousadia.

Vilas e Ovelhas Ranhosas IV

Escrito no livro de contas da taberna... lido com o dinheiro. Chamaram-me o filho do Pragmatismo. Fui alcançando uma proeminência diria quase física sobre os que me rodeiam. A começar pelos meus filhos.
Pestanejo sempre que tenho de calcular trocos. Devo ficar com um ar deveras aparvalhado. O meu sucesso é a minha mulher. Se não fosse o seu jeito na cozinha à muito teria fechado as portas. “O segredo está em não mudar o óleo”.

Recolha de escritos avulsos feita por um louco da nossa vila encontrados pelos filhos do padeiro Elias enquanto brincavam numa antiga cisterna seca. Chamava-se Carlitos. Costumava assistir à missa. Benzia enquanto-se ajoelhava com um gesto amplo e quase dançado. Sorria satisfeito quando as beatas velhas lhe afagavam o cachaço como a um potro. Dir-se-ia meigo mas rosnava se não ouvia as respostas ao ofício do seu vizinho do lado. As calças de bombazine gastas davam-lhe um aspecto de trapo.

Vilas e Ovelhas Ranhosas III

Um incêndio. Um lugar morto. Um dente podre entre o casario desarrumado encosta abaixo. E decerto um espírito ensandecido que agora vagueia em busca de morada. E nem o calor das vigas enegrecidas... Mas decerto depois de envolvido nas vinhas selvagens e abrunhos-juvenis... reconstrói-se o lugar. Uma churrascada e abençoa-se de novo o lugar semeado de vinho novo.

Acidez. Aqui os frutos não chegam a amadurecer. Vergam os ramos com o peso rijo da juventude. A geada corrói a pele. Queima. O solo traga a fruta esquecida pelo vento. Acidificam-se as entranhas dos rebentos raivosos por uma dentada amorosa que não chegou a ser desferida. Tanto sumo que ficou por verter.

O sangue escorre pelo degrau. A faca. A cozinha escancarada revela a fornalha onde se refastelam os gatos. A chaminé larga esconde a fuligem até ao céu. A sujidade escondida imprime carácter às coisas. É assim...

A bosta das vacas que se acumula nos estábulo se não é removida enrijece como argamassa. Anos e anos de bosta acumulada reforçaram os alicerces do nosso estábulo. Os pintassilgos debicam o feno repisado.

A tia T.. guarda o feno num poço. As compridas forquilhas ameaçam os céus. Ninguém guarda o feno em poços. Ao final da tarde quem se aproximá-se podia ouvir os guinchos das lutas de grandes ratazanas perdidas entre o feno. Ninguém gosta de ser interrompido nos seus actos íntimos, muito menos pelos seus semelhantes.

Ninguém discute a proveniência das águas do rio. A água é preguiçosa e vai moldando os leitos em curvas quase humanas. As “represas” abandonadas são como segredos escondidos na frondosidade da galeria fluvial. Um corpo insepulto, um nado morto, uma relíquia partida, um braço amputado: os nossos segredos apodrecem entre o húmus esquecido na sombra.

Vilas e Ovelhas Ranhosas II

Este pelorinho enfezado no centro da praça, sobre um pódio de escadas mal calibradas aos passos duma pessoa, pesa demais sobre as nossas costas.

Criamos burros. São lanudos e atacam tudo o que tenha um cheiro agradável. Não se lhes pode oferecer um troço de chocolate que nos tentam mastigar o braço de seguida. São largados nos terranos de pousio e estraçalham até as canas que vicejam junto aos rios.

Uma sombra fria infiltra-se pelo musgo que cobre as pedras dos rios. Pequenas serpentes e sapos. A peçonha. À noite choram e piam omo almas tristes enquanto se fabricam as neblinas matutinas.
As águas são gélidas como as mãos das crianças. A água é uma dádiva sagrada e a noite a sua mãe.

Diz- se que ainda vive uma velha madre no arruinado convento. As galinhas bem as vemos para lá andam. As águas da fonte carcomeram as caras das gárgulas e pintaram-les barbas de limos.

Qualquer homem desta vila tem barbas. O tio t.. ainda trabalhou na construção da escola.
Camisola grossa. Mãos grossas como o tronco das árvores. Mais que a idade conta o trabalho feito e o melhor indicativo sãos as unhas. Grossas como carapaças.

Carapaças e capas. Castros. De que falar se não há guerras? Só nos restam as muralhas e a decadência. A figueira que irrompeu no antigo torreão luta com o vento impetuoso. E a guerra é uma dança sem fim. As raízes mordem a terra. Os frutos acidificam os solos.

A fruta louçã sobre a mesa atoalhada espelha a exígua sala. O odor duma casa marca a verdadeira identidade dos seus moradores. Lenha, bafio, refogado, azeite, fogo. As paredes nuas ora cegam de luz ora morrem na sombra. É um santuário. Ouvem-se os gemidos do soalho. Um homem de joelhos pode idolatrar o seu lugar.

Vilas e Ovelhas Ranhosas I

Esta história passa-se numa vila que nunca conseguiu chegar a ser cidade e cresceu tanto que a deixaram de chamar aldeia.

Os dias soam nascer iguais. Avaliando pelas manhãs diria que é sempre primavera. Um nevoeiro denso cobre tudo. Os rios correm perto quase sempre fracos mas com um rumor constante.
Cheira a molhado e a vetação fresca. A humidade é má para os ossos dos velhos e as ovelhas ficam ranhosas...

O padre passeava na mata. Era estranho vê-lo de batina entre os arbustos revoltos que se agarravem às árvores. Com uma pequena tesoura de poda libertava os jovens carvalhos da prisão das silvas.
Missão redentora sem dúvida. Era magro e tinha um sorriso satisfeito.
As árvores mais velhas curvam-se.

Curvado no confessionário desenleia os fiéis do sufoco dos espinhos da alma. São sempre os mesmos pecados. A luz não chega ao tecto da velha igreja. Granito e xisto. Bastante asseada pobremente asseada.

Os caminhos secos e encurvados estratificam as montanhas em torno. Os muros de xisto serpenteiam, por vezes caem e falam sempre de um trabalho árduo feito um dia no princípio de algo.
Os inícios são sempre fulgurantes. Não haveria obra se assim não fosse. Estes símbolos dos começos enchem de melancolia as paisagens. É ainda mais duro mudar o que já foi erguido e a cristalização das formas verga-nos a vontade.

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...