Adonai criou o mundo pela palavra e em seguida ele próprio se fez palavra. O seu avô nascera Alentejano e desde então ninguém havia abandonado a região. Eram conhecidos na zona como os Seres Sublunares. Eram pacatos e veneravam a noite. Elohim era o filho mais novo e as gémeas as do meio. Delas escrevera o notário um opúsculo bizarro que se lia nas festas da aldeia para gáudio da criançada chamado Cântico dos Cânticos. Ele fantasiava que as duas seriam suas esposas vivendo o trio com uma alegria fulgurosa. O filho do notário chamava-se Himeneu e passava o Verão dando concelhos aos jovens sobre a forma de alcançar a felicidade envolvido na sombra e nos vapores dionísicos da tasca do Senhor Pafo. Himeneu era belo e a sua mãe por ele morria de amores. Adonai estava às portas da morte e escrevia. Pensava para si que: ” Todas as histórias deviam começar com alguém às portas da morte”. Enquanto Aguardava aternamente pela consulta do oráculo do médico de família na frescura da sala de espera do centro de dia ia escrevendo e adormecendo num jogo continuo de sonho e assentar de ideias. Lamentava-se se alguma vez se esquecia dos pormenores deliciosos com que os mafarricos o embalavam.
O cunhado de Adonai, Sepher Zohar era o verdadeiro solitário de Tebaida, adquirira por 5 garrafões de vinho uma velha caserna perdida no sobral perto dum casebre alentejano estiado ao chão esquecido por um segundo na berma da auto-estrada numa nesga de terreno ataviado de bravas azinheiras esquecido num canal non-aedificandi. O barulho dos pássaros era acamado por um roar contínuo de camiões de fruta em trânsito. No Verão era o seu porto de abrigo onde podia dar largas à sua preguiça e o seu egoísmo deixava a cama por fazer. No seu retiro gritava feliz ao fim da tarde canções sem nexo:
“Suplira dzaniatha
Hadra Raba Hadra Sutha
Sanedrim Sanedrim”
E eventualmente acabava por mudar o destino do mundo com invocações lançadas aos céus incoscientemente. Reuniu-se à sua volta um grupo de discípulos que o reverenciavam como Cabalista. O sol da tarde seca as ruas de gente mas no pátio de Sepher discutem a Amizade e a Traição e aferem o calibre da verdade.
Thoth a filha de Sepher veste de negro e com o seu nariz afilado e recurvo assusta como um furacão nas folhas da floresta as crianças que regressam a casa depois das aulas. O seu espírito indomável levou-a a beijar Adonai roubando ao velho o último suspiro.
Odin-Loki, Midgard, Thor, Jormungand construiam todas as casas das redondezas. Cada um andava com a sua ferramenta pela qual era conhecido. Surpreendiam-se em uníssono com as maravilhas do mundo e agiam sempre colegialmente. Eram como os dados do poker. Eram os pilares de vários lares disseminados pelas faldas dos montes.
Jean Sony morava numa casa de cantoneiro. A casa foi construída mas a estrada acabou por não passar por lá, por isoo ficou perdida no meio da mata. Pensa-se que a sua família eclodiu por cá aquando das invasões francesas. Dispersa a família em busca de outras guerras sobrou Jean que tinha um espírito mais contemplativo. Trabalhava na Maxam, uma empresa de explosivos para exploração mineira. Por essa altura subia e descia o Mondego à procura de clientes. Marcava almoços com homens que afundavam as suas empresas nos meandros lodosos do rio.Nas suas andanças cruzava lugarejos e edifícios abandonados que lhe despertavam pensamentos poéticos:
“O vento uiva nas ruas desertas porque é um selvagem e não tem quem o guarde.
O vento uiva nas ruas desertas porque tem saudade dos rostos das gentes que lhe fizeram frente”
ou se atravessava a fachada dum antigo sanatório:
“Costumava ouvir esses urros do meu quarto no Ospital de los Incurables. O doutor prescreve-me sessões de espancamentoe jejuns rigorosos. Sou uma camisa de forças esfrangalhada...”
Divagava ensimesmado fixando tão atentamente o infinito que a realidade se desfocava e não raramente acabava com as botas ensopadas nalguma poça.
Ragnarör usava um penso no olho esquerdo, tinha um sorriso preocupado que khe fazia inchar uma veia perto do olho tapado. Dava aulas de psicologia. Nunca chegara a sair da universidade. A sorte dos protegidos. Para ele um certo conforto financeiro era natural. Preocupava-me que com aquela idade ainda andasse de chapéu australiano como se ainda tivesse folgo para aventuras exóticas. Apartir de certa idade devemos aprender a disfarçar as emoções que nos provocam as descobertas. Não cai bem num rosto maduro a sofreguidão jovial por um prazer recém descoberto. Claro que tal fogosidade há-de despertar paixões em alguém, e isso é sempre benefício, mas devemos ficar agastados perante as paixões. Os seus passos eram trágicos. Durante a sua fase Heavy Metal tatuara no peito “Saga-Götterdämmerung” e o martelo de Thor rasgando um trovão nos céus.
O Judeu errante era o personagem mais assustador da serra. Trazia o símbolo do tau impresso na fronte e o T de Tubal cravado no peito. Reverenciava Artaxerxes alçando-lhe laudes em linguas mortas ou agonizantes. Trazia um volume da Cabala no coração. Entrava e saía pelos canais de Sefirot como um bom vizinho pelo que o declaram morto várias vezes. Caía em êxtase à beira dos caminhos. Os seus antepassados eram os guardiães das páginas perdidas do Libre Vermell de Monserrat onde os Cátaros em 1399 haviam escrito a canção dos Cavaleiros do Apocalípse no dia da sua passagem pelo Egipto.
O Sr. Carlos D’Orme usava máscara para disfarçar um angioma que lhe deflagrara na infância. Usava um bastão afilado para sentir as vibrações dos ventres das suas ovelhas prenhas para não ter de lhes tocar temeroso da larva berneira. A sua tia Karin Dreijer perecera com um deses obuzes a mastigar-lhe o esfenóide.
Myriam et Mamadou como bom casal de africanos professos na mais pura tradição animista deixavam uma cesta de frutas debaixo da cama, cerejas para ser mais concreto. Gerem um café situado no istmo que liga a Serra da gardunha à aldeia de Alpedrinha por cima da auto-estrada. Tingem as redondezas de guitarras dolentes africanas e “Mon amour ma cherrie’s” com que se golpeiam a toda a hora. Deuses Lares a quem se oferecia o fogo que não podia extinguir-se pois era a chama dos antepassados o sacramento do passado que deve ser honrado tinham o seu recanto junto da casa da lenha nas traseiras do estabelecimento comercial.
Miriam sonhava com os gestos dos cães: a forma como piscam os olhos, o cuidado com que se sentam, o jeito de transportarem os filhos na boca é tão delicadamente humano que Miriam sentia o seu coração arrebatado. São gestos, mas o nosso coração é mais tocado pelo que move.
Para Mamadou as armas e utensílios devem ser belos. Devemos rodear-nos de coisas belas. Por isso o homem tribal enfeita de penas a sua lança e o homem moderno deve adocicar o seu discurso porque num mundo cada vez mais robotizado a palavra volta a ser uma arma.
Thoth sempre foi o coração e a língua de Ra. Habituada a fazer as suas vontades recebera o encargo dos celeiros. Os celeiros eram um conjunto de pavilhões obsoletos com chão de betão e largas vidraças quebradas onde se podiam ver milhões de esqueletos de pássaros mortos.
Decamarão e Demorgia deitaram-se dez vezes e dez vezes o Senhor os abençoou.
As dez criaturas tinham fartas melenas e ao final da tarde de rostos voltados para o sol agonizante pareciam bois almiscarados ao vento. Pareciam todos do sexo feminino mas três eram rapazes.
Epinefrina ou Adrenalina alcandorada sobre os montes rins sempre dera à nação filhos acelarados e sedentos de guerrilha. As suas filhas eram tesas e boas parideiras. As vacas de raça Alentejana sempre foram boas mães, pachorrentas, tetas generosas e um tom castanho nos modos que relaxa tanto como a languidez distendida das hastes.
Comia Häagen-Dazs encostada num muro do porto. Fixava o sol durante uns segundos e quando fechava os olhos via um anjo branco a flutuar dentro das pálpebras e falava com ele. As histórias encadeadas que vão puxando outras histórias numa estrutura espiralante ribossomática, como as sementes de um girassol. Haloarcula chamara ao seu anjo.
Buzatti e Potocki fumavam psicotrópicos deitados entre as giestas. Costumavam convidar Larissa para os seus passeios mas ela recusava sempre com altivez e frieza no seu olhar. Quando alucinavam crivavam as estrelas de palavras e frases que lhes incendiavam o entendimento a memória e a curiosodade:
“--Quarentena Czar
--Guardei a tua morada
--Todos temos segredos
--Crise nervosa
--Quatrocentas facas
--Toda a gente em baixo
--Umlaut Urlaub
--Gorgoroth
--Nemátodos”
Na ânsia do esquecimento que a náusea lhe provocava por aqueles dias, Goebbles ergueu paredes duplas que escondendo a podridão das alvenarias velhas. Perdeu área nas salas mas alcançou um maior controlo sobre os seus estados de espírito. Sim porque a ira mais básica é influenciada pelo ambiente. O estampido da fúria encapela-se perante a desordem e leva o homem acometido de ira a escravizar os seus súbditos.
A descrição dum homem tinge totalmente um ambiente. Hispano no seu recanto da enfermaria passou os meses que lhe haviam concedido de vida a esboçar na memória os homens com que se cruzara. Deu um estilo ao album como um mestre que desenvolve a técnica do Sfumato ou a Assimetria dos componentes. Falava com todos eles em mono-tertúlias pós-prandiais na sombra do alpendre. Vinham encontrá-lo as enfermeiras de rosto transfigurado e luminoso balbuciando frases disconexas com várias referências a Babilónia. Por ter desobedecido ao horário de deitar davam-lhe tabefes amigáveis com as costas da mão no cachaço.
O Sr. Olof um emigrante apaixonado pela luz do Bombarral era o encarregado da manutenção do serviço. A sua filha de pernas altas e narinas largas parecia uma égua graciosa. Olof usava o creme depilatório da filha para reparar falhas na alvenaria se lhe faltava o reboco.
Hispano teve um ataque no dia 13 de Maio pelas 2 da manhã depois duma mija noturna, a mão escorregou no Veet ainda fresco e bateu com o crânio numa mesa de vidro baixinha de estilo oriental. O peso das memórias era tanto que o vidro se pulverizou e as limalhas cravaram-se no corpo dos restantes companheiros do dormitório.
Tomás Manso