2.10.07

Não gosto de te ver assim velado

Não gosto de te ver assim velado
corta os laços do teu véu
deixa-me contemplar abismado
o esplendor desenhado no céu

só nos separe este cristal
já sinto o teu cheiro encarnado
há minha espera em silêncio no quintal
quero beijar as pétalas do teu lado.

Zé Chove

Desde Pequeno

Desde pequeno começou a escarafunchar,
com a unhita mole o imenso bloco de calcário
sobre o qual a sua mãe o dera à luz
- para sempre lá ficaram, cada vez mais esbatidas,
as manchas do sangue materno.-
Sempre a raspar ao de leve, talvez uma poeira diária.
Ao princípio com a displicência das crianças como se fosse uma brincadeira.
Debicando aqui e ali quedava maravilhado,
com os reflexos do sol nos cristais pétreos.
Mais tarde com determinação até que lhe sangrassem as unhas,
nalguma protuberância que mais o incomodasse.
Não sabia nessa altura o que o levava a esgravatar na pedra.
Nunca chegou a perceber se o desgaste
da pedra era provocado pelo seu esforço ou pela chuva.
Por vezes passava dias a sentir toda a pedra deitado de costas
esfregando com as mãos o frio monólito,
roçando-o também com o corpo até adormecer satisfeito.
Com o passar dos anos a pedra foi-se moldando ao seu corpo.
Mais tarde reparou que o seu corpo se deformara
de encontro aos obtusos ângulos da sua laje fria.


Lúcia

1.10.07

Shot#18

Ser ou não ser
ex - a questão.


Vasco Vides

Sorvia sôfregamente

Sorvia sôfregamente os fiapos sonoros despedidos pela guitarra ecoante.
Imaginava caminhos de ferro abandonados atravessando as mais diversas paisagens
Continha os gemidos de prazer, o choro e os gritos de raiva para não acordar o resto da casa.
Por vezes saltava de música em música em busca da que mais prazer lhe dava nas orelhas. Todo o seu corpo vibrava ao som das ondulantes melodias.
Os refrões acompanhavam-no pela vida. Tinha o refrão matinal/diário e um para cada situação da vida.


Lúcio Ferro

Shot#17

Tens inocência nos teus olhos apesar deste mar de podridão
Mas já baloiças desamparada
Os tubarões já te rodeiam


Mário Mosca

Um mar de gente invadiu o vale de Chelas

Um mar de gente invadiu o vale de Chelas
As tendas batlavam com o vento fresco
Aproximei-me de olhos semicerrados do sol
Ouviam-se gritos de crianças ciganas

O cheiro era de almoço apesar de ser cedo
Entrámos na maralha compacta
Vimos todas as raças
O sol forte trouxe as cinturas das miúdas

As ciganas de preto gordas davam concelhos às mais novas
Um preto quase azul experimentava um paletó de ceda branca

(Totalmente incompleto)


Filipe Elites

Mast Qallandaer

Lálááaaaaaaaaaaaaaa´´´´´´
Pernas sobre o tapete
O tecto de barro tosco
No fogo ancestral o chá
Falamos e fumamos
À noite

Quentes e alegres cantamos
Rasgamos a garganta em louvor
A Deus dos céus e da terra
Abraçamos os nossos filhos
De madrugada

Gritam os pássaros
Acordam as crianças
Tudo brilha cheio de cor
A felicidade palpita nas veias
da aurora


Ivo Lascivo

14.9.07

The Vale of Rest - Millais

Archivo de imagens #11

Blocos

Blocos de gelo na estepe,
longe das casas e do céu,
fica perto o horizonte.

Nuvens que esmagam as montanhas,
montanhas que choram em silêncio.
Piam tristes as urzes crestadas de seco.

A minha única companhia são as minhas mãos,
Respiro estas pedras seculares,
Sinto o frio com uma dor insuportável.

Oiço os meus passos com um atraso de séculos,
Caio de cócoras agarrado ao ventre,
Faço lama das minhas últimas lágrimas,
E nasce uma flor branca defunta.

André Istmo

Redondilha do tostão

Cabisbaixo me aproximei do balcão
um aguaceiro de bagaço
acalentou meu triste coração
o meu espírito ficou turvo baço
e com desprezo arrotei um tostão


Nicolau Divan

Molhei os Dedos na Molheira

molhei os dedos na molheira
sou lavajão malcriado
gotas de sebo no tapete persa da minha tia
chupei com avidez a banha fervida
não fora manchar os punhos puros da minha camisa
com olhos semicerrados de prazer
sorvi os restos
acumulados nos interstícios das unhas


Filipe Elites

A minha pele absorveu muita tinta preta

A minha pele absorveu muita tinta preta
depois chorei óleo negro
dormindo sozinho na garagem
os pensamentos são meu único escape
nesta biela da vida
retrovisor desta linha de montagem


Zé Chove

Cortinado de sarapilheira

Cortinado de sarapilheira
anos oitenta com mofo
e flores cor de laranja
sobre um papel de parede
imitando barrocos azulejos
à beira da marquise de alumínio


Ivo Lascivo

mundo de linha rectas

mundo de linha rectas
o meu amor é um cubo
tornado quadrado com o tempo
vai outra vez mais rápido
sugado até um ponto.


Lúcia

Dissertação

Podíamos dissertar acerca das maravilhas,
dessa cria singular da gastronomia portuguesa,
umas mais entre o género das fêmeas,
a grandiosa, a doce, a grossa,
essa mártir frita no óleo – donde tira a sua força -
aquela fofa, alegria de manhãs domingueiras,
tentação mais forte das crianças,
a cheia e loira, levemente encarquilhada
querida fartura
faz-me chupar os dedos
e reclama sempre uma companheira
mal me roça o colo do estômago


Vasco Vides

Old Vic

Perdido num beco escuro
onde fumam grelhas de esgoto
os miasmas matutinos
escondendo sombras vultos furtivos
ao longe catenárias choram gemidos
quando te aproximas da porta refundida

tocas à porta noite alta
és aceite no covil
antro de perdição aquecido
sofás de veludo
tecto escuro
sibilam conspirações
entredentes máfias de bairro
luzes ténues de confidências
molhadas em álcool escocês
o breu sussurra indecências
espírito de art noveau
espelho de decadências

(PS: não deixe de visitar os lavabos)


Lúcio Ferro

Michael Sowa - Pig Soup

Archivo de imagens #10

Loucos

Tinidos gélidos no metal,
vozes etéreas siderais,
halos azuis atravessando espaço,
infinitos brilhos em espirais.

Passam cegos aos milhares,
cruzam sem dimensões,
partículas sem vontade,
esbarram mortas de cansaço.

Grito “loucos”,
sem substância,
caio aniquilado...


Carlos Marques

Rosador

No palacete gótico à muito que as gárgulas ganharam vida
cânticos joviais rasgam as noites sem fim
os árvores ululam sem resistência
as sombras envolvem a triste criatura
poderosa e ingénua parte a pedra distraída
não foi criada, foi fabricada de dor
o seu criador não nascera ali mas por amor
subira o morro raivoso
corroído por dentro
e o fruto do seu pecado fora a espantosa
Rosador
mais bela que o seu modelo
concebida para matar
o traidor


Carlos Marques

Crianças a Dormir

crianças a dormir quentinhas nas suas alcovas
a lua brilha lá fora
a mãe aconchegas com carinho
a neve acumula-se no parapeito
o Natal chegou


Nicolau Divan

Caiu no poço

caiu no poço a criança de dois anos
sua mãe destroçada
desfaz-se na berma
espancada pelo marido que a ama
começar de novo com lágrimas


Ivo Lascivo

um rio preto

um rio preto
um vestido vermelho
a mesa com os candelabros
beijos quentes e doces
a tua mão branca no tapete de pelo denso
abracei-te com paixão
entornaste o vinho no meu cabelo


Nicolau Divan

Ela falava

ela falava e falava
diligência desenfreada
ribombando na plana pradaria
silêncio do meu sótão


Vasco Vides

oh doces luzes do terror

oh doces luzes do terror
morte dura de um jovem

um boi esventrado
fachada decadente
de laranja afagada
rio de sorte inclemente

não sei se faço bem em revolver esta sutura
o corpo dorido queixa-se ao mínimo movimento


Diniz Giz

Um Burro

Um burro sarnento e esquecido
deitado no pó da terra
pele de manta castanho férreo
arfando todo já vencido


Paulo Ovo

13.9.07

Anna Netrebko in St. Petersburg

Archivo de imagens #9



doutor distinto e cavalheiro

doutor distinto e cavalheiro
deixava as mulheres a suspirar
o charme francês de fraque e cigarreira
dançou pelo baile de chá
ninguém sabia o seu apeadeiro


Lúcio Ferro

uma árvore ao vento #3

será um mês de trabalho árduo.
somos três.
fiquei encarregado de carregar as ferramentas.
seguíamos em silêncio.
o bafo opressivo que emanava do chão
e o sol que nos chapava na cara
fazia-nos curvar o pescoço.
os passos do primeiro faziam
gorgolejar a água nas tinas.
os lagartos escondiam-se nas pedras à nossa passagem.
o percurso da água agora poeirento
seguia sinuoso e rápido por entre o matagal.
por vezes tínhamos de trepar algum rochedo
ou resvalavam algumas pedras sob os nossos pés.
agora a aldeia brilhava encaixada lá em baixo.
os pulmões arfavam
levemente na ânsia de chegar.
os meus olhos encheram-se de lágrimas
com o brilho fulgurante do mar que ficava para trás.
quase no topo a serra ficou nua
e sem vida neste troço em que mais pedras rolam
nem os cardos se agarram.
mais acima um grande paredão de rochas puras brilham
intocáveis aconchegadas entre si por escuros sombrios arbustos
que tentam esconder-se da força do sol.
cruzámos a cordilheira por baixo de uma rocha
imponente qual dólmen ancestral.
a paisagem agora já não se estendia até ao
infinito como no oceano.
deste lado mais verde e fresco.
uma aragem vinda do
norte atravessou-nos lânguida o corpo.
A vista para o vale era doce e sorridente
alguém disse a primeira palavra.
Já entardecia o vento tornava-se fresco.
O silêncio da natureza fazia o pensamento
borbotar em todas as direcções.


Zé Chove

11.9.07

Homo-Socialis

Chamem-me o prevaricador,
o mãos largas, o estranho,
afastem as vossas filhas
trocem do meu jeito
tranquem vossas casas
façam figas

deem-me essa glória
da consideração social
quero deixar memória
ter entidade judicial

ao passar por mim na rua
desconfie, reaja, estremeça
por favor não passe
com indiferença


Vasco Vides

Aditamento #2

Nick Cave - And the Ass Saw the Angel

Joanna Newsom - Y's

Jim Morrisson - An American Prayer

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...