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3.3.10

Vinhas de Sangue

Afastando a manta da manhã
Os confins pariram-nos de rubi
Espinhaços, serras, plainos e rechãs
E o tinto vertido infinito rio

Cedo se cresta o vale de tanto rasgo
Desenho nas costelas do meu peito
Conduzindo as paralelas escarpas
Nas vergastadas do inverno a eito

Esteado às escadas de xisto
O estoirado vinhedo vermelho
Que sangro! Em vertentes ébrias do rosto

Rácimos-chagas dádivas de Cristo
Cálice da Agonia de joelhos
Vinhas de sangue lágrimas de mosto

Zé Chove

19.2.10

Queda

O pânico que o gavião esqueceu
Com o hábito da queda alta
Sobre o sufoco do vazio
No corpo nele envolto
Suspenso no diafragma
Dispara o coração
Sem alvo à vista
Ou impossível de abater.
Se perigo metralha
A agonia de morte
Que alma embala
Na supressão contínua do espaço
É do ver se bala-destruída
E sem tê-la agarrar a dor
Como único sustento
Que o fim nunca mais chega.

Zé Chove

16.12.09

Insônia

Separo a carne e como só as cartilagens numa farta malga de alumínio em que se reflecte a solitária vela que conjura nesta não-cozinha todos os espíritos que procuram algum conforto entre as sombras. Mas nunca o encontram - foi vendido. O nível do vinho – a escuridão engarrafada – sussurra o esvaziar das horas. Quando não existe posição para dormir o melhor é ficar acordado...

Zé Chove

4.12.09

Traças e Osgas

Oh como compreendo as traças... A fria, gélida luz branca dum lampião ao lado dum casebre branco intermitente à beira da auto-estrada atrai-nos como uma lareira numa tarde de Outono. Expresso Lisboa Sevilha. Meios-tons, tudo se reveste de meios-tons, Aljustrel embebida na nebelina acolhe-nos numa paragem de 20 minutos. Daqui podia partir, fugir das obrigações. Em vez de Sevilha por aqui fico. Meia-hora e lá vou eu rumo a Madrid. Sem poiso, sem ninguém, como a traça. Nova paragem, uma vila perdida no centro da Ibéria e novo golpe, agora rumo a Marselha e assim até ao Cáucaso.
Paragens de vinte minutos podem mudar a vida dum homem. Paragens em estações de serviço desertas, as portas da camionete abertas à geada, abertas como um convite aos estranhos. A caminho, o ronronar dos pneus no alcatrão, crioulo no banco de trás, o americano esquálido à direita na coxia e se alguém ronca com mais paixão: tosses nervosas e pigarreios anónimos. Meios-tons. Iluminação pública rasgando o nevoeiro e as silhouetas das solitárias oliveiras. Mas falava das traças. Confiamos uns nos outros, conforta-nos uma espécie de alívio quente ao sermos recebidos pelas geladas luzes de qualquer erma povoação. Em cada corpo humano pelo menos 36 graus centígrados emanados, assim à cabeça, como uma dádiva involuntária... caminhamos convictos auto-estrada fora, como a traça se acerca da esfera, do globo luminoso, felizes. Dançamos. Nessas casas brancas esculpidas pelo vento à beira da estrada esperam pela nossa leveza de espírito, esperam, as osgas para nos matar.

Zé Chove

30.5.09

Decisões Betonadas

permanece na memória, imarcescível
das decisões betonadas
com a sua vida parada e uma armação inamovível

A noite desceu infrene
O meu maior medo é que me venha a falhar o coração

Zé Chove

30.4.09

Arca Velha

Afago 1917 em rebites na tampa do baú
Onde guardo a memória e sobre o qual me dobro
Um dia o sol entrou nesta sala
Como o baú tão oca e seca como a brancura
desta cal que greta onda o olhar se perca
absorto em tanto traço do passar do tempo
onde tudo converge e se intersecta
em velho couro tisnado de arca velha
que calor da solidão verga e desenha
um novo mundo em linhas perdidas
percutidas por uns dedos distraídos

Zé Chove

11.4.09

Mediterrâneo

Não vi mas acredito na sombria sala
onde jazem homens mortos na fria tijoleira
cuidados por matronas silenciosas
vestidas de pano cru como a cortina que nos esconde
da omnipotência branca do sol mediterrâneo
são intermináveis os dias alimentados na flor da laranjeira

Zé Chove

6.2.09

Humores II

Um odre d’horas
Odre de vinho
Um barco de vinho

As trevas enchem as árvores de paciência
Se os brotes forçam o crescimento

Abóbadas de árvores
Livros de húmus
Livros de pedra

Nestes azuis
Vales de mosto
Que tarde amansa
O vinho e a noite
Sangram do exangue fruto
Talhas de verdade

Zé Chove

Humores I

A abóbada de chumbo gelado
Inspira o relento

O silêncio de pedra em pedra
É um rio gelado

Tronco oco

A terra que sustém a respiração
Nega o fruto
Escondida entre esteva e abrunhos ri-se
É um odre esquecido
Na gruta mais fria
Repleto de mosto novo

Zé Chove

As Feridas

as feridas vendadas
sem estarem curadas
gangrenam e matam

* * *

grado colhido o medo
já desmaiado do dia
entre abrolhos emersos
na dispersão da neblina

Zé Chove

3.2.09

Tiros de Sal

A sombra entranhou-se nas pedras.

Cadáveres de salitre
E bafiento granito
Abandonados em túmulos de silvas

Debruçada em curva fraternal
Sobre dois encurvados carvalhos

Alheado da morte
Jogando ébrio na pista rotineira
Das estações do ano

O Inverno, sacramental
Da noite imprime carácter

Zé Chove

25.1.09

Cachões de Flores

Cachões de flores derramados muro abaixo fragrâncias
Esvoaçantes pássaros de mil cores tijolo e cimento escaldando
Ao sol de Agosto um pimento louro dum meio-dia de boca-cheia
De fontes refrescas frutas sopranas frutas como as brasas entre as grelhas
Sob o carvalho marcando o pino do céu esquecido do transcorrer das horas
Sonhando o aroma das estevas

Zé Chove

5.1.09

Litania

para Arvo Pärt

o tintinabulo súbito
pinga na nuca
faz ribombar a aragem
do temor de deus
réplica dum temor esquecido
que foge ventos fora
no ecoar do sino

Zé Chove

Carroçeiro

Guardar algo que vem do exterior
Na carroça do feno
Uma parte do reino
Qualquer observação
Parte daquela visão geral
Não um desejo mas quase uma teoria
Não procede a vida da visão
Vontade vista deslumbrante
Intelecto possível inflado
Em ascese de atrelado
Cavalgando desabrido
Reclinado sobre a palha
Distraído

Zé Chove

20.12.08

Os Arcos

Os arcos feitos das mesmas palavras
a pedra impiedosa que esmaga o corpo em silêncio
vês-te no homem forçando
o denso mato
arco sangue e espada
o anjo firme
prostrado o alento da terra
seco o peixe
oiço o assobio no quarto do meu
filho

Zé Chove

10.11.08

E se os muros

E se os muros se abatem sobre rio
E se os muros
E se os muros se abatem

Arrasta caudaloso a terra
Onde mordem as árvores

Zé Chove

13.10.08

Agraços Olhos

Agraços olhos sobre os lavradios
ensombram antes da noite os vinhedos
afagam seus dedos de morte frios
os infantes frutos imóveis de medo

serpenteia negro o suor pelos regos
em oclusas levadas de silêncio
envenenando a sede de loucas cepas
as filhas de uma estúpida inocência

Esse fogo tocado com o olhar
não esmorece e decepa os sarmentos
com a inércia em queda milenar

Oh cinza não reveles os seus passos
liberte-se a chuva em pensamentos
amargos e chorem os verdes agraços

Zé Chove

23.9.08

HH - XIV

a emersão nas tépidas águas

medicinais a farmacopeia etérea
guardada na cavidade da rocha
mergulha em soco violento como
a noite carregam sobre a árvore os
batedores fustigam furiosamente os frutos
em lixívia abrasadora dos rastos
inscritos no bronze moldam as marmóreas margens
à espadeirada quem vergará os gonzos
ajoelho-me violentamente
praias e praias vazias varridas do vento
impiedoso marés violentas de bronze
sangra o tronco num impulso de graça

o puro orvalho da manhã de damasco

Zé Chove

Raquel

o tempo não chega e tudo o que

a noite nos quer dizer adianta
caminho cruzamos todo o ouro no terreiro
seco não chega o espaço o algodão arde
em fúria cai o metal do desejo em chuva
a mãe em busca dos filhos leva-os o rio
os seixos do rio cegam na transparência
afogados em pureza cegam aquecem
o peito das crianças expostos ao esbanjamento
do sol a estocada do escultor no peito da vénus
de calcário cega sob os arbustos a sombra
das silvas o xisto que enche a bruma ampara a
frondosidade do carvalho marca a chegada
da noite final da terra lavrada em torrente

de fogo o fogo que não se consome

Zé Chove

11.9.08

Toca-me

Anos sobre anos de casa em casa
Sem mover o pó que envolve as coisas
Entre salas silenciadas pela asa
Do segundo que toca mas não poisa

Vogam o horizonte os vagos olhos
Divisando desvendá-lo no vento
Mas se ele amaina e seu sopro perde a voz
Voltam costas em busca do momento

E os passos esses passos dão lhe vantagem
Atravessa as casas praças e ruas
Não sucumbe à paração do pensamento

Foge perdido sem cruzar ninguém
Emana em tudo quanto e quando muda
O inúmero imenso imuto imundo tempo

Zé Chove

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...