18.2.10

Funeral

Dez vezes sufragado o corpo

Cessou por fim a chuva
Uma última palavra
Trovoou fora da eremida
Libertando a mirra do peito
No chuvoso lagedo
Reflexo do céu em luto

André Istmo

17.2.10

La Strada

Torre

Viver no prédio das mil fachadas
Milhares de janelas
Os rostos prisioneiros no inverno
Carne encarcerada no ascensor
Da botoneira negra e sangue escarrado no espelho
O sórdido betão inumano
As primaveras floridas de sardinheiras
No parapeito e os lençóis lavados
Pandos de tanto branco
Acampamento cigano no verão
Assados no carvão na escada de incêndio
O sol arrastado lento pelo saguão
Mil fachadas de oiro mil sombras nas varandas
No outono procuro um rosto
Esquecido nas paredes dum apartamento
Mas entre as esquinas de mil paredes
Só passa o vento, só passa o vento.



Nicolau Divan

Cerração


Todo o mal radica em falsidade.
O mal pelo bem. Diluição. Cerração.
Perfuração. Queda. Satisfação Selvagem.
Aguentámos o discurso da ética até à exaustão?
Acordamos de noite com o relinchar
aflito dos cavalos no estábulo?

André Istmo

15.2.10

Bjartur's Reverendgudmundur Sheeps

Adormeço com estas

Estrada Romana

A estrada romana vai descendo com o rio. Uma parte da estrada foi enterrada quando se construiu a ponte da auto-estrada. Devia ser o troço mais interessante do percurso, porque aqui o vale é mais estreito e mais profundo. As águas invernais sentindo-se comprimidas redobram de força e o homem encavalitou entre as escarpas graníticas a sua azenha.

Os gigantes blocos de granito. Tudo sucumbe à fúria do rio: a terra, os animais que guincham em pânico, as árvores, o despenteado silvedo... Os rochedos permanecem fortes sustentando as águas impedindo que o seu vigor se dissolva na sequiosa terra.

A uns passos daqui fica um mosteiro medieval. É composto por vários corpos suportando-se mutuamente na comum degradação. Quem vem do rio depois duma vinha separada da terrosa estrada por um muro depara-se com o conjunto envolvido à esquerda por uns socalcos ensombrados por decrépitas latadas e à direita por um exército alinhado de salgueiros e plátanos frondosos. Daqui divisam-se três corpos bastante diferentes entre si mas bem proporcionados e unificados pelo tom maciço do granito amarelado.

Lúcia

Duplos e Triplos

Adoro duplos e triplos albuns
É o prolongar da relação
Extende-se o tempo e engrossa-se
A história. White Album,
Melancollie and the infinite sadness,
Sketches for my sweetheart the drunk,
Unearthed, Live at Sinè,
Mashed Potatos, With the Lights Out,
Abbatoir Blues and the Lire of Orpheus,
Lost Dogs, Kid A and Amnesiac,
E a bem da sanidade despejo no mesmo saco
O que foi concebido separado
Morrisson Hotel e American Prayer,
Oh, Inverted World e Chutes to Narrow,
Blue Lines e Mezzanine,
Odelay e Mutations
Tardes e tardes e tardes e tardes...

Madalena Nova

Nan Elliot

A Invenção do Machado

Os processos, modos ou formas de actuar
Desenvolvem tal mecanicidade
Tal fluência... a técnica infere na força
Desenhando-lhe o entalhe certo
E a força aplica acutilância à técnica.
Não oferecem resistência as cabeças
Sob este pesado machado de lâmina silente.
Revoltam-se as almas com tal frieza
Sobretudo as mais apaixonadas
Pela imperfeição perfeita da natureza.

Tomás Manso

Rock XIV

Deliro na vertigem
Da guitarra em queda
Espiralada, quase
Verto lágrimas tal a
Velocidade e todo o
Corpo sente o embate
Da bateria seca
Esmagado no chão.
Feedback descola a
Pele dos músculos
O sangue furioso
Rasga a garganta

Mário Mosca

Pedagogia

Virou-se para trás e esmurrou o puto. Pumba, pumba, pumba. Sangue no vidro e silêncio – sinais exteriores de mudança no semblante ranhoso. Por o dentro o consolo do enquadramento pessoal num papel social de encarregado de educação como justificante. E para sublinhar o papel formativo prenhe de razão volta-se, o braço direito agarra a cabeceira do banco, o rosto sereno e assesta-lhe um soco na testa. A paz interior sussurra-lhe “a vida não está para brincadeiras”.

Filipe Elites

4.2.10

Lisboa Romântica XII

















Ramiro Olho Vivo

Sede

As grossas raízes mergulharam sedentas nas águas do rio
Umas foram arrastadas pelas torrentes
Outras apodreceram
Algumas derrubaram represas
Cavalgaram os leitos
Construiram cidades nos meandros altaneiros dos rios
E embalaram amores com as suas visões fugazes
O coração perde-se sempre nos redemoinhos
das correntes provocados pelos ramos das árvores
que volteiam submersas
por sobre as copas desses gigantescos barcos
descansam crianças devolvidas aos braços de mães imperatrizes da terra
vultos fibrosos densos de troncos sequiosos de mais água
sede extinta pelos oceanos que incendeiam
com a fúria de viver
em mil frutos exóticos com polpa de lava.

Orlando Tango

3.2.10

Indefinidamente

O que é que nos preocupa?
Estamos preocupados com alguma coisa?
Talvez seja essa a primeira preocupação.
Saber o que nos ocupa o pensamento emergente.
Deverei fixar o objectivo do meu olhar? Ou deverei
Desfocar os olhos e distender o tempo de urgência
Indefinidamente?

André Istmo

Mecânica

Quando um electrodoméstico
Define metade da humanidade...
Não tem cheiro não exige força física
Que lhe dê movimento
Prefiro habitar entre correntes e engrenagens
Sentir o contacto ferrugento das rodas dentadas
Aspirar o aroma do óleo que tinge a pele
Sentir a continuidade da força animal
Desdobrada e multiplicada pelo mecanismo metálico

Tomás Manso

Fundamental

Como é que um olhar pode
Transparecer tanta esperteza
Concomitante com tanta lerdice
Pois lá vai ela abanando a cauda
autocarro fora mascando o resto
do seu cérebro. Uma coisa é verdadeira
o sorriso era falso.

Filipe Elites

Henry David Thoreau

“Corujas-das-torres...Oh sábias bruxas da meia-noite!...um solene canto funerário, as mútuas consolações de amantes suicídas lembrando os tormentos e deleites do amor celestial nas alamedas do inferno.”

“Enquanto os homens acreditarem no infinito, alguns lagos serão tidos como insondáveis.”

Walden

Rio Poio

Frank Black

E os gritos imprimiam um carácter
de adoração e temor implicito
aos predicados, não vos escandalizeis
infiro-o das palavras. E assim
se equivaliam deus e o bronze das
raparigas estrondosamente
expulsos da garganta com a mesma violência.

Mário Mosca

DNÇ

Um som estranho deve soar primeiro
Uma baforada de incerteza
Que desperte a curiosidade
Um ronco vindo de longe
Aveludado e ancestral
que hipnotize rasgando as planícies da memória
e desperte a vontade de “dançar”
dançar enquanto acto essencial
de expressão dum sentimento
que as palavras não saibam dizer
que o cérebro não saiba formular mas
que um frémito irreprimível da vontade
se derrame em calda de movimento interior.

Filipe Elites

Primavera

Revela-se o navio.
Libertas por fim da agonia
Dos cabos respirem
As velas com um silvo.
Do fogo opresso pela vergonha,
Toda a musculatura comprimida
Brota desperta por uma visão de primavera.
Os dedos tremem com um impulso
Irreprimível mas sem objecto.
O peito, profundamente matutino,
Grita como a águia esfomeada.
Os pessegueiros afloram às maçãs do rosto,
E em fonte inesgotável lança-se dos olhos
A alegria-delicadeza com um travo de sangue
Que pela saliva se expande.

Mário Mosca

Salto-Cavalo


O Rio

Uma parede de xisto ressequido
Descansando até ao rio
Tingido de ferro uma calda de óxido milenar
Beijando infinitamente a superfície calma da água
A erva brava dava-nos pelos joelhos. Os nossos
Corpos desenhavam-se angulosos mais escuros que a sombra
Dos salgueiros que húmida nos envolvia
“Oh margens de penumbra perpétua” já cantava o poeta
Dificultam o acesso às águas do lago
Resguardam-se nos espinhos, amuralham-se em raízes,
Encavalitam-se os rochedos, abruptos como dentes arreganhados
E apodrecidos de negros limos, espantam os estranhos com detritos esvoaçantes
Trazidos pelas tumultuosas águas de janeiro,
Troncos esfiampados de longas barbas, silvedo e vestuário gasto das crianças
Afogadas no rio...
Assim que os nossos pés tocam as águas superficiais exaltam-se os girinos e pequenas rãs castanhas. As lamas intactas quebram-se em nuvens polvorosas, turvam-se os pés.
Removemos os galhos em decomposição com os dedos dos pés com se fosse um ossário submerso.
A excitação é para alcançar o sol que nos cega a três braçadas da margem. Perto de Alcafache o rio diverge em múltiplos canais formando negras e impenetráveis ilhas de lama negra e malária mosquiteira.
Rapidamente os fundos se tornam de areia. A brutalidade das torrentes invernais esculpe anualmente o leito do riocom novas fossas e cristas arenosas, é como se lhe fizesse a cama. Cada obstáculo do percurso das águas é sorvado com violência em esteiras divergentes gerando um turbilhão de redemoinhos.
No rio Poio a selvajaria das águas esculpio maravilhosas cisternas perfeitamente cilíndricas na rocha granítica.
Nas imediações das represas os rios alargam e amansam como lagos.
No centro da albufeira em que nos banhanhos emergem três blocos de granito grandes como quartos, moldados pelas águas como o sabão azul das lavadeiras, ao meio-dia escaldam sob o Ângelus impiedoso. Deitados sobre os rochedos tornamo-nos cúmplices da tertúlia dos salgueiros e urzes que se espelham na água cristalina. Na Serra da Estrela existe uma lagoa com as águas rosadas devido às algas que lá se reproduzem. Os corpos debaixo de água tingem-se de cores psicadélicas e venenosas. Na base dum dos blocos de granito está encalhado um tronco monstruoso como um mastro de caravela está recoberto com uma poalha esverdeada onde debicam dezenas de peixes negros. Nas covas dos calhaus onde o vento não toca amontoam-se os alfaiates.

Nicolau Divan

Desert Rose Yelei Yelei

Adagas, sangue, templos esquecidos,
animais assassinos
rastejando as praças abandonadas à
selvajaria do vento frio,
paixão dilacerante quimérica,
por toda uma vida que será eternamente jovem
congelada numa lápide a prata,
masmorras, ecos, alucinação, gemidos lancinantes,
olhos demasiado pintados como chagas negras,
lágrimas quartesmais, jejum, correntes,
velas vertidas sobre a carne indefesa como símbolo de pureza
perdida com a brandura do cera dormente,
escorpiões, noites geladas ou o inferno impiedoso do sol,
impiedade, o zénite e o ocaso num segundo,
caravanas, areias desérticas, possessão,
algemas, escravidão, chave da caveira, trotes fulgurantes,
superfícies cromadas e enferrujadas, antagonismo,
donzelas vagamente latinas e dorsos acobreados,
índia sacerdotiza do ritual esquecido como a brasa
sob a cinza, fogo-sopro-fogo, cactos imponentes, penhascos, agressividade,
desfiladeiros, grutas, os céus como centos de cascaveis revoltos,
o assobio solitário, a fogueira tribal, o banjo, o coiote, o abutre,
impetuosidade, abnegação, paixão exacerbada, sacrifício,
culpa, voltar as costas ao mundo.

Madalena Nova

Se o Coração

Se o coração estremece ao vento sul
A vitalidade do deserto faz vibrar as pálpebras
No ar estrelejam os fogos e os estoiros no ar
Ribombam no coração
E embargam-nos a fala
Tudo se passa no ar
Resplandece a calda de nuvens imemoriais
Descende nas nossas nucas
Desnudas o arrepio sideral
E trota no espaço o trovão
Num segundo o dia rasga a noite
No paladar um travo a azul petróleo
Impressões digitais indeléveis na súbita
memória sequiosa de mudanças arrebatadoras
uohoooooohaaa
enche me de paixão

André Istmo

Walden Mate


1.2.10

Nem Tudo o que Vem à Rede é Peixe

Sonhámos com a ressonância das palavras
O mesmo eco libertado do sino nos vales
Paulo Ovo

Gostei mais do dia da marmota do que do dia do marmoto...
Rui Barbo

Graças a Deus fui abençoado com uma certa dose de estupidez que me impede de ver..
Diniz Giz

Contarei uma história baseada no Do little dos Pixies – jovens numa praia ondas que aparentemente não nos deixam surfar – faz te pequeno...
Carla Corpete


Como deveria ser feito um album
Henrique

Como reages perante o amor/paixão
Manuel Bisnaga

Os copos tilintam
Os corações declinam
Maria Vouga

Janeiro
Diário dum péroco de Aldeia e Walden
Zé Chove

Vaguear no escuro
Na antiga eremida o pó
De escuros braços das árvores
Presos no interior das minas
Nós Sombras
Lúcia

Cromo-dorsos de motociclos que irrompem
do peito de cada homem
o asfalto quente que inebria as nervosas têmporas
Mário Mosca

In the City

Através da cidade esférica
na sedosa limousine
és o fulgor na bracelete metálica
no cetim indiferente nos lábios da lepra

és o balançar da city desperta
és o balançar da desgraça
sem sexo sem cheiro sem identidade
glamour inebriado um miasma
uma convulsão a morte sem dignidade
um perfume despedido pelas ruas da cidade

Filipe Elites

Cuidados

Carinhosamente ou meticulosamente compões o alinhamento e a côr perfeita a dar às frases de forma a não magoar ninguém e a todos convencer. Poderemos viver com menos depois de nos embrenharmos na fartura? E uma vez sentidas todas as costelas do torso terás empenho suficiente para suportar a engorda?

Filipe Elites

As Montanhas

As montanhas vão galgando todo o espaço que a vista alcança. Tingidos de uma neblina que resplandece com os raios solares do final tarde. De memória não sei precisarse o seu tom era cinzento, rosado ou talvez violeta e perto do céu esverdeado azulado. Os montes são docemente arredondados como hematomas roxos na cabeça duma criança. No caminho as aflorações xistosas surgem como os despojos de tesouros abandonados à pressa, com os seus laivos doirados de óxidos ferrosos e a riqueza das formas. Os tojos envolvem estes retábulos como aconchegos de penas verdes frondosos. Não saberia precisar o que mais entusiasma se a segurança das formas laminadas pelas intempéries milenares se a loucura das cores vermelho sangue de boi, laranja, verdes, pretos profundos matizados os tons pelo vinagre ácido e corrosivo do óxido. Oxidare matar em latim.

Orlando Tango

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...