14.9.07

The Vale of Rest - Millais

Archivo de imagens #11

Blocos

Blocos de gelo na estepe,
longe das casas e do céu,
fica perto o horizonte.

Nuvens que esmagam as montanhas,
montanhas que choram em silêncio.
Piam tristes as urzes crestadas de seco.

A minha única companhia são as minhas mãos,
Respiro estas pedras seculares,
Sinto o frio com uma dor insuportável.

Oiço os meus passos com um atraso de séculos,
Caio de cócoras agarrado ao ventre,
Faço lama das minhas últimas lágrimas,
E nasce uma flor branca defunta.

André Istmo

Redondilha do tostão

Cabisbaixo me aproximei do balcão
um aguaceiro de bagaço
acalentou meu triste coração
o meu espírito ficou turvo baço
e com desprezo arrotei um tostão


Nicolau Divan

Molhei os Dedos na Molheira

molhei os dedos na molheira
sou lavajão malcriado
gotas de sebo no tapete persa da minha tia
chupei com avidez a banha fervida
não fora manchar os punhos puros da minha camisa
com olhos semicerrados de prazer
sorvi os restos
acumulados nos interstícios das unhas


Filipe Elites

A minha pele absorveu muita tinta preta

A minha pele absorveu muita tinta preta
depois chorei óleo negro
dormindo sozinho na garagem
os pensamentos são meu único escape
nesta biela da vida
retrovisor desta linha de montagem


Zé Chove

Cortinado de sarapilheira

Cortinado de sarapilheira
anos oitenta com mofo
e flores cor de laranja
sobre um papel de parede
imitando barrocos azulejos
à beira da marquise de alumínio


Ivo Lascivo

mundo de linha rectas

mundo de linha rectas
o meu amor é um cubo
tornado quadrado com o tempo
vai outra vez mais rápido
sugado até um ponto.


Lúcia

Dissertação

Podíamos dissertar acerca das maravilhas,
dessa cria singular da gastronomia portuguesa,
umas mais entre o género das fêmeas,
a grandiosa, a doce, a grossa,
essa mártir frita no óleo – donde tira a sua força -
aquela fofa, alegria de manhãs domingueiras,
tentação mais forte das crianças,
a cheia e loira, levemente encarquilhada
querida fartura
faz-me chupar os dedos
e reclama sempre uma companheira
mal me roça o colo do estômago


Vasco Vides

Old Vic

Perdido num beco escuro
onde fumam grelhas de esgoto
os miasmas matutinos
escondendo sombras vultos furtivos
ao longe catenárias choram gemidos
quando te aproximas da porta refundida

tocas à porta noite alta
és aceite no covil
antro de perdição aquecido
sofás de veludo
tecto escuro
sibilam conspirações
entredentes máfias de bairro
luzes ténues de confidências
molhadas em álcool escocês
o breu sussurra indecências
espírito de art noveau
espelho de decadências

(PS: não deixe de visitar os lavabos)


Lúcio Ferro

Michael Sowa - Pig Soup

Archivo de imagens #10

Loucos

Tinidos gélidos no metal,
vozes etéreas siderais,
halos azuis atravessando espaço,
infinitos brilhos em espirais.

Passam cegos aos milhares,
cruzam sem dimensões,
partículas sem vontade,
esbarram mortas de cansaço.

Grito “loucos”,
sem substância,
caio aniquilado...


Carlos Marques

Rosador

No palacete gótico à muito que as gárgulas ganharam vida
cânticos joviais rasgam as noites sem fim
os árvores ululam sem resistência
as sombras envolvem a triste criatura
poderosa e ingénua parte a pedra distraída
não foi criada, foi fabricada de dor
o seu criador não nascera ali mas por amor
subira o morro raivoso
corroído por dentro
e o fruto do seu pecado fora a espantosa
Rosador
mais bela que o seu modelo
concebida para matar
o traidor


Carlos Marques

Crianças a Dormir

crianças a dormir quentinhas nas suas alcovas
a lua brilha lá fora
a mãe aconchegas com carinho
a neve acumula-se no parapeito
o Natal chegou


Nicolau Divan

Caiu no poço

caiu no poço a criança de dois anos
sua mãe destroçada
desfaz-se na berma
espancada pelo marido que a ama
começar de novo com lágrimas


Ivo Lascivo

um rio preto

um rio preto
um vestido vermelho
a mesa com os candelabros
beijos quentes e doces
a tua mão branca no tapete de pelo denso
abracei-te com paixão
entornaste o vinho no meu cabelo


Nicolau Divan

Ela falava

ela falava e falava
diligência desenfreada
ribombando na plana pradaria
silêncio do meu sótão


Vasco Vides

oh doces luzes do terror

oh doces luzes do terror
morte dura de um jovem

um boi esventrado
fachada decadente
de laranja afagada
rio de sorte inclemente

não sei se faço bem em revolver esta sutura
o corpo dorido queixa-se ao mínimo movimento


Diniz Giz

Um Burro

Um burro sarnento e esquecido
deitado no pó da terra
pele de manta castanho férreo
arfando todo já vencido


Paulo Ovo

13.9.07

Anna Netrebko in St. Petersburg

Archivo de imagens #9



doutor distinto e cavalheiro

doutor distinto e cavalheiro
deixava as mulheres a suspirar
o charme francês de fraque e cigarreira
dançou pelo baile de chá
ninguém sabia o seu apeadeiro


Lúcio Ferro

uma árvore ao vento #3

será um mês de trabalho árduo.
somos três.
fiquei encarregado de carregar as ferramentas.
seguíamos em silêncio.
o bafo opressivo que emanava do chão
e o sol que nos chapava na cara
fazia-nos curvar o pescoço.
os passos do primeiro faziam
gorgolejar a água nas tinas.
os lagartos escondiam-se nas pedras à nossa passagem.
o percurso da água agora poeirento
seguia sinuoso e rápido por entre o matagal.
por vezes tínhamos de trepar algum rochedo
ou resvalavam algumas pedras sob os nossos pés.
agora a aldeia brilhava encaixada lá em baixo.
os pulmões arfavam
levemente na ânsia de chegar.
os meus olhos encheram-se de lágrimas
com o brilho fulgurante do mar que ficava para trás.
quase no topo a serra ficou nua
e sem vida neste troço em que mais pedras rolam
nem os cardos se agarram.
mais acima um grande paredão de rochas puras brilham
intocáveis aconchegadas entre si por escuros sombrios arbustos
que tentam esconder-se da força do sol.
cruzámos a cordilheira por baixo de uma rocha
imponente qual dólmen ancestral.
a paisagem agora já não se estendia até ao
infinito como no oceano.
deste lado mais verde e fresco.
uma aragem vinda do
norte atravessou-nos lânguida o corpo.
A vista para o vale era doce e sorridente
alguém disse a primeira palavra.
Já entardecia o vento tornava-se fresco.
O silêncio da natureza fazia o pensamento
borbotar em todas as direcções.


Zé Chove

11.9.07

Homo-Socialis

Chamem-me o prevaricador,
o mãos largas, o estranho,
afastem as vossas filhas
trocem do meu jeito
tranquem vossas casas
façam figas

deem-me essa glória
da consideração social
quero deixar memória
ter entidade judicial

ao passar por mim na rua
desconfie, reaja, estremeça
por favor não passe
com indiferença


Vasco Vides

Aditamento #2

Nick Cave - And the Ass Saw the Angel

Joanna Newsom - Y's

Jim Morrisson - An American Prayer

Já a luz definhava

Já a luz definhava, entrámos no rio,
Mergulhámos no negro profundo,
O líquido envolveu-nos de frio,
Quem me aquecerá agora?

Os movimentos lentos,
Com medo da escuridão,
Senti o teu corpo de cetim,
Fiquei com falta de ar.

Lúcia

Cervunal

Fui à Serra da Estrela
pastei num lindo cervunal
com as cabras e as ovelhas
não comi nada mal

Maria Vouga

Deixava o álcool

Deixava o álcool assentar em pensamentos imorais,
Vagueando sem sentido junto ao velho cais.

O corpo quente e a cara refrescada pelo rio,
A carne dormente mole,
O espírito desperto malvado queria mais.

O rio corria negro sem matéria sem fundo,
A malícia da alma chicoteava,
O corpo exausto.

Os olhos fixavam tudo,
Ancorados às coisas do mundo,
Para não se afogarem no remorso bruto,
Que o arrasta pró mar profundo (abismo do mar),
Nas noites tristes sem luar.


Zé Chove

Nick Cave

Archivo de imagens #8

Melga

Deixei uma melga no meu quarto entrar,
Fechei-a cá dentro, irritado,
Chupou-me o sangue queria acasalar,
Morreu sozinha de cheio papo.

Vasco Vides

10.9.07

Soneto Industrial

A frieza da modernidade de outrora,
na antiga fábrica abandonada,
foi acamada por tufos de viçosa flora.
A estrutura permanece intacta,

em vez de vidros tem pombas,
pintura de verdete e ferrugem.
Interior arrumado por bombas,
almas rangem, estalam, plangem.

no escuro suspiram cadavéricas,
as máquinas em silêncio,
por mais oleadas décadas.

A fachada mantem vetusta imponência,
a nave sem carnes é esquelética.
Sinto conforto nesta digna decadência.


Zé Chove

Tu não querias mas tiveste de engolir

Tu não querias mas tiveste de engolir
o prémio do bolo rei.

Marco Íris

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...