28.5.11
Oh vós que pendeis desse lado da amurada
Oh vós que pendeis desse lado da amurada
do oceano atentai na nossa pequenez
Oh vós postados nessoutra quina Atlântica
senti como o meu amor é extenso
e mareia nas margens do vosso quintal
em ondas sopradas do meu peito amazônico
e em lavrada poesia lusitana me expresso
a língua em que me melhor ecoa a saudade
a mercadoria que a vossas altezas envio
meu ouro, prata, canela e pimenta
feitos amor na imensa distância
Brás
Bless the System
Entre fotocópias enfrentas a vida
contribuis pró orgulho da empresa
e no pó te espera um terno e um sapato
é teu conforto do dia a dia
o trabalho que te absorve a energia
o corolário de uma vida de estudante
o construir duma reforma segura
e de apartamento em apartamento às de subir
talvez um dia um ecran plano
e vives um sonho de autocarro
bendizes o governo e segurança social segura
e se à noite tiveres fome
sempre tens a gravata ou o jornal distribuído
no metro
lisboa empresarial acolhe
de braços abertos do teu cristo
mais um seixalense aflito
lisboa dos ministérios frescos
acolhe mais um camponês afoito
vinde todos enrascados de vendas-novas ao magoito
vinde oh moçoilas casadoiras
conhecer empreendedoristas de barba azul
vinde oh bimbos de gel no cabelo
vinde conhecer a glória da empresa
e abençoai o sistema
no silêncio da vossa kitchnet
abençoai o sistema
Filipe Elites
Gado Velho
lá onde os homens nascem de badalo ao peito
e as mulheres de novas balem como cabras
entre os monturos brutos do granito preto
desceu um dia a torrente da lama danada
depois de séculos de sentimentos acerbos de glória
chegou enfim o momento da cegueira
em que loucura dá os passos derradeiros
e a ebriedade do coração, mata qualquer réstia de razão
e as mãos calejadas de sangue
afagam o rosto das crianças esfomeadas
e saem para a labuta numa outra madrugada
Maria Vouga
Esquinas Dobradas
Esqueci-me a cada esquina dobrada
das fachadas das ruas passadas
como às culpas da minha vida
absorto nos passos do dia-a-dia
mas ao chegar a casa
mas ao chegar a casa
a iluminação noturna
desenha de luz as avenidas
e um sentimento de falta
meus trajectos popula
mas ao chegar a casa
mas ao chegar a casa
desejo voltar a trás nos meus passos
e traçar novas fachadas nos prédios
mas desmorona-se o passado
mas desmorona-se o passado
a cada esquina dobrada
Madalena Nova
Pai Tejo
Tejo pai justo que distribuis tuas riquezas
pelas tuas filhas deitadas no teu regaço
A umas enches de luz e a outras desenhas rostos delicados
Tejo irmão fiel do sol a quem espelhas
Irmanam-se de ti as estrelas irmãs pequenas por ti se guiam
e és o céu das barcaças que por ti navegam oh Tejo
e as casas depositam em ti seus olhos abismadas
Tejo que recolhes as almas e as devolves ao oceano
Lúcia
Mangue Beat Me
As botas escorrendo mangue
nos pulsos lama e sangue
àguas mornas e barrentas
manhãs de bolor, tardes lentas
meu cheiro afasta o gringo
como se eu fora leproso
mas a mulher c’oa janta pronta
me agarra e beija gostoso
e a terra é tão mole
junto ao nosso rio
que se abrem as covas
e os mortos voltam à vida
e o siri branco de chuva
alimenta o povo como hóstia
e a gente que reza no mangue
apesar do cheiro tem alma pura
Sôr Flamengo
Endorfina Caseira
chicoteio o ar indiferente
e o vento imemorial e sem razão
atinge as melenas do cabelo
esbofeteia-me
e só me resta mais uma cerveja
na geleira
a chuva explode lá fora
e as dúvidas afogam-me no lava-loiças
as beatas bóiam amarelas na sanita
e os olhos amarelos de diabitas
arrebitas o coração no sofá
e excitas
minha vontade de fanecas fritas
as baratas escondidas nas esquinas
e cruzando livres o balcão as formigas
abres as pernas com calças de licras
e a libido desperta firme e hirta
deseja o lábio da ave triste
minha esposa aflita
e o cómodo todo em eco grita
e o caudal do ventilador agita
as saias da vizinha
e enfim liberta a endorfina
a vontade maligna sibila
os baby-grows espalhados nos espaldares improvisados da cozinha
os cinzeiros atafulhados de cinza
uma barba grisalha e fina
collans de fidro em fim de vida
um triciclo sem rodas
e um vaso com cactos ressequidos
as portas abertas que há muito se partiram os gonzos
e na rádio a chuva poluída sobre as ondas hertzianas
sobre a mesa fedem três tocadas bananas
e em toda a atmosfera os reis são os minúsculos mosquitos
todas as palavras proferidas são ordens e voujás entediados
os pneus do alonso acompanham o varejar das moscas orgulhosas
as plantas gritam de sede
e ainda temos de ir à Missa
e os pedaços ressequidos de frango sobre a mesa
entre chaves de casa, saleiros, óculos de sol, facturas por pagar
um cão em cima duma cadeira coçada pelo próprio
nos quartos as camas amassadas exalando os suores de morfeu
camadas de pó sobre os livros nunca lidos sulcados de pintelhos
junto às janelas pequenos insectos mortos
falhas na parede ajeitadas com bochechos de cimento
algures um papel de parede enfolado
ouvem-se a milhas uns sussurros de vizinho distorcido pelos corredores de mármore frio
cebola avinagrada pelas portas do frigorífico
tardes infindas ao ritmo seco duma bola de basket algures no pátio
tanto tédio que adormece as moscas sobre os reposteiros verde ácaro de veludo napolitano
depois duma sesta esmurrada nos olhos
e uma cagada merecida lendo uma revista sobre os lamas extintos
envergo de novo o pijama
Zé Chove
Realidade Abatida
quando se abate a tarde
a machadadas lentas sobre o horizonte magoado
dá-nos a vontade de comer
e refastelados pensativos sem rumo
rastejamos sem matéria de cuecas no sofá
e desejamos uma aura mística sobrevoando
a nossa vida de cães cronometrada
os olhos percorrem a perspectiva de candeeiros
da avenida e um arroto satisfeito
traz-nos de novo à realidade
Diniz Giz
26.5.11
Oh Vento Norte
vem além de toda a solidão
das brumas de todo esquecimento
entre as ondas tristes do entardecer
com o som da revoada oh vento norte
terei para ti a carne no fogo
e a cama vestida de lavado
as portas abertas ao teu corpo etéreo
e o teu espírito pela janela há de entrar
vem com as brisas entre os sobreiros
desce pelos vales da sombra de pinheiros
que te aplaudam as braçadas rio acima
e as copas dos salgueiros
Paulo Ovo
Chelas City
Chelas que te esfumas
entre baldios com teus prédios anónimos
toda cruzada de largas estradas
mesclada de tantas raças
tanta ignorância em tuas avenidas pardas
Oh cidade cinemática sem horizontes
onde estão tuas quintas
quem rebentou teus antigos muros
abandonaram-te os eremitas
secaram tuas árvores de fruta
Filipe Elites
Arrivals
Chegamos à vista do porto calmo
e na lonjura dos anos um som de guitarra faz nos chorar
desfaz-nos o peito a doçura da saudade.
Chegamos agora de avião
e uns meses que parecem sempre anos
fazem que os cheiros familiares
oh doce Lisboa
nos façam chorar
e esta luz que te envolve
e os vultos negros que cruzam a calçada...
Lúcia
Sala dos Brinquedos
Sala dos brinquedos na longinqua manhã
de madeira onde escorregam os raios de sol
nas latas, nas vidraças, nos piões e no carrossel
venezianas que despedem o pó dos anos
trespassai a minha infância de luz e sombras rectas
e que as andorinhas de Verão pintem negro
o meu céu de criança
de gatas no soalho da sala de brincar
o olhar vago pousando em tanto tempo
e os sons do campo através da janela
oh vizinhança oh vizinhança
Oh poço de roda em que brinquei
Oh doces figueiras aromas de menino
oh paredes brancas e telhados em brasa
nunca mais depois de voz tive férias
e aguarda-me agora uns passos à frente
o alcandorado branco entre os vultos dos ciprestes
dos Prazeres meu cemitério
Oh descanso eterno que eternidades nos levas a alcançar
vinde aqui mais pró de perto
avivai nossa vontade de chegar
Zé Chove
Paixão:Lisboa
Espuma branca da costa da caparica e azul claro da trafaria
uma garoupa pescada nas redes da minha barca vermelha
anseio paixão por ti Lisboa agarrar-te pelo cabelo
escarpas tuas curvas teus beiços de lusa telhas sardas de campanários
teus peitos arcos perfeitos angustiados de saudade triste azul pintados
nas águas do Tejo reflexos.
Orlando Tango
Garota da Urca
E de novo o vento, sopra não sei bem de onde, algures entre a Praia Vermelha, o morro da Urca e o morro da Babilônia. Grita a passarada Tucanos, Bem-te-vis, as mudas tortolias embalam as sestas dos peões que deitados nos bancos de concreto pesado fantasiam sobre as formas dos côcos lá no alto. Cruzam silenciosos os gaviões centelhas negras que sobem e descem com o bico escrevendo nos maduros paredões graníticos dos morros. Eu deitado e ela passa. E a brisa que a envolve devia ser inscrita como pecado no Lexicon uma chama de Hades com cara de menina distraída. todas as poças a fotografam rendidas por terra. E o pó do chão levanta-se exaltado como no dia da criação do homem.
Sôr Flamengo
Retratos do Rio
A árvore cansada de transar com o vento suspirou fundo, o pátio estremeceu e o dia rolou na sua incessante fome de movimento.
O claustro da modernista da universidade com suas lajes, pilares e rasgos brutalistas adormecia comigo envolvido no letargo da melodia simples de alguém varrendo talvez no piso de cima ou lá em baixo no jardim interior. Enchi o peito do mundo e desfoquei a paisagem como um apaixonado que fixa demasiado perto o rosto da sua amante.
As garças imóveis retrasavam as ondas de calor exaladas do mangue.
Tanta água canta doirada enquanto esperamos. Um minuto gera uma hora e o sono pinta a tarde de eternidade.
A entrevista para selecção de investigadores foi curta como um relâmpago e de novo a realidade se tinge de pasmaceira e boas vibrações. Eu não fumei mas vim-me a babar na van do Fundão até à praia de Botafogo.
De olhos semicerrados vi as torres altas de igrejas semi-góticas despontando do caos cubista das favelas e penso na vida de entrega dos padres. Oh santa loucura como os invejo de tão forte paixão que os eleva, que os enleva.
Depois tacteio com os olhos toda a textura do acampamento dos sem casa. Uma fogueira, cartões, sacos atafulhados de incertezas, lama, destroços de betão, uma cerca arrombada na beira da auto-estrada, farrapos de roupa, corpos esmiuçados, olhares difusos, indícios de instintividade animal...
E abraço depois a tepidez da normalidade humana esboçada em milhares de criaturas, cruzando automaticamente as calçadas, com medo do amanhã e uma esperança infinita nas alegrias do fim-de-semana, eles pensam Senhor, mas nem tanto, porque é que os havias de vomitar boca fora?
Sôr Flamengo
Cartão de Amor
Invoco as constelações e todos os deuses
de religiões postergadas para que assolem
nossos beijos e que incendem nossos corpos
preencham de sentido nossos silêncios
e afoguem as negras comuns memórias
Nicolau Divan
Arquitectura Celestial
Perturbo-me diariamente com a derrocada do meu edifício espiritual uma bela pérgola delicada com um toque romântico plateresco mais preocupada com o aspecto exterior que com a fortificação de alicerces ou o amuralhamento protector contra as adversidades intrusivas do mundo.
André Istmo
Empreendimentos
Acordámos depois de uma noite resfriada. O Bem-te-vi picáva-nos o cérebro lá fora sob um sol estuporado. Aqui há uns anos teria despido a roupa e saltado em pelota para a lamacenta água da baía. O deck ainda em processo de legalização ambiental range a cada passo. Os direitos colonizadores dos portugueses foram transferidos para uma cambada de brazucas gordos e bem dispostos refugiados em resorts e villages luxuosos. Fui apresentado a um destes espécimes que procriara uma construtora e sorria como um labrego. Fiquei certo de que se houver oportunidade ele me dará a mão para me afogar na betoneira dele.
Sôr Flamengo
4.2.11
Piranha
O esplendor descendo de mão dada com a libertinagem
e no seu encalço a sombra da tristeza,
beijam-se o orgulho e a preguiça
gulosas de luxúria
mergulham num poço de ganância
e dão à luz uma piranha!
Sor Famengo
Apontamentos Pessoais
O meu amigo gustavo tinha um ténue cheiro a águas paradas
nunca percebi se era falta de banho...
Zé Chove
Eu Vim
Vim apesar de tudo
apesar de me faltar o chão
e no bolso nem tostão
eu vim
apesar do negrume dos céus
e do rugido atemorizador
do mar que me afoga os passos
eu vim
eu vim e não encontrei ninguém
e encontrei a casa vazia
eu vim
apesar de tudo
de tudo o que eu deixei
o conforto da alma e a barriga cheia
as canções e os sonhos que não sonhei
deixei
deixei a casa e os pais
e os papéis desalinhados sobre a mesa
eu vim
eu vim apesar de tudo o que afastei
ao longo do caminho
laços que se me abraçavam às pernas
afastei
afastei os escolhos
arregacei as calças fiz me ao caminho
e não encontrei ninguém
Sor Flamengo
Divagações Tropicais
Fomos escolhidos
fomos escolhidos
mas não escolhemos nossos filhos
não
não escolhemos nossos filhos
somos enviados
viados
somos enviados
viados
mas reprovamos no vestibular
sim
já reprovámos no vestibular
corpo e alma quem acredita?
Cê acredita?
Corpo e alma amalgamada plasticina
quem nos tira esta sina?
Como estrela sem rumo caímos num espaço
sem vida
uma mulher, uma skol, um samba, um churrasco
são tira-gosto para nossa sede de infinito
Sor Flamengo
Doce Condição
Um dia mais tarde hei-de escrever sobre os meus desaires de amor.
Como um quarentão guinchando à lua reclamando por algo que perdeu na juventude.
Vendemo-nos todos por várias pratadas de lentilhas e de pança cheia se nos obnubila a sensibilidade. E se por acaso alguma planta se aprochega para nos beijar na fronte por compaixão arrotaremos de olhos semicerrados como porcos javardos que somos. Ingratos. Eternamente nos chegam as bençãos na forma de brisas leves que nos tentam elevar com uma frescura benfazeja debaixo dos braços mas obstinados curvamo-nos e no meio da vara focinhamos nas alfarrobas como se de um manjar se tratasse.
Nicolau Divan
Mórbidas Paixões
Pela gente deu o hábito de caminhar nas trevas
entre as pregas esconderam as claras
e afundaram a paz dos ventos e semearam tempestades
e proclamou-se a desconfiança como pedra de toque
as vozes filtradas pelas pranchas dos caixões
emudeceram que a noite à muito terminou
e o sopro do coração gotejou na madrugada
nas folhas jovens da erva alta dos baldiosLúcio Ferro
O Jorro
como vidro no olho
polpa do sumo o tomate
solto o jorro
o longo longo jacto
a erupção do sangue
no estofo ou na calçada
o borbotar da veia cá fora
o morno da linfa
sobre a tua cara
a cuspidela viperina
da serpente no rosto
da menina
Brás
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