24.3.15

Serradura

porque é que tantos podiam viver em cafés e ser artistas
vindos da pobreza e hoje não mais podem ter essa regalia
ou será que deveria desistir de dinheiro como o pacheco
e viver de gabardine estufada de jornal velho?

13
O mestre ao aperceber-se segundos antes
o petiz vomitaria a palavra bruma na poesia
calma garoto não sei se está na hora de revelar tanta beleza

toda a religiosidade e toda espiritualidade
a quem se enfia no berço delas prenhe de felicidade
e torpor e satisfação e espanto e sucção dos sentidos
qualquer templo nos nebuliza e pulveriza
perdemos a fome
queremos ser assim

até percebermos que pureza e a excelência
implicam sofrimento e cortes e mutilção
e aceitação do medo e da renuncia com um sorriso


20
Dá para sentir como eu sou ao falar do que falo?
Dá para dizer como sou ao descrever o que eu vejo?
Sou do tipo normal de pouca fibra e menos talo
sou um adulto com pouca margem financeira para o desejo

não gosto de incomodar e estou sempre sujeito
como que a uma espécie de jugo que obstroi o cernelho
obriga a vistas curtas a não ser que fuja
para outro país ou concelho

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concelhos, distritos regiões administrativas, feudos concelhias
estruturas de controle bastardias
vivemos para o poderoso estado como mulheres-a-dias

e ainda que me saiba embora sob uma bota espezinhado
de certa forma um previligiado
eu só quero fugir ou que rebentem as fímbrias deste estado
que oprime a nação ocidental e vergasta todo o mundo oriental

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Era a personificação da seca risada AHAHAH seguida de turbilhonada de expectoração e fungadela piscada de olhos e depois só sorriso escrachado dum cotovelo ao outro
era pesadote e andava meio abatido dos joelhos e ombros com as mãos ao pendurão. Uma ponta de camisa saltando desfraldada ou saindo pela braguilha negligente enquadravam o latagão que aspirava aos quadros da betice. Caíra desamparado de bragança a Lisboa, era granito chocalhando numa saca de cascalho calcário.

Cada fase de escrita destes poemas
corresponde a uma gravidez artistica
como o lançamento de um albúm ou um livro

cada período em que vou despejando uma enxurrada de textos
vem encharcada de influências e refletem momentos da minha vida

Vou cantar-vos uma canção encantadora
de tradição, pensamento e fé

23.3.15

papoulas

depois deixamos vaguear um pouco os olhos pelas papoulas selvagens
como quem solta o cachorro já sem risco de ser atropelado
inspiramos fundo e deixamos que a alma se afogue no reflexo de um charco
ou numa moita na aspereza da terra seca e ficamos imóveis
deixando que os passos se dêm só lá ao longe nas cristas do horizonte
até que chegue o meio dia e meio despertos sintamos fome

20.3.15

refogado

Adoro-te amor mas não sei se gostarás do meu refogado
preparo-te a minha casa com naprons e tudo bem arejado
meu vestido de bolinha isso eu sei que vais amar
vem numa tarde de sábado e prova do meu refogado

efe iu si kay

todos passaremos por aquele clarão depois da morte
alguém esperando por nós e a sensação maravilhosa
do verdadeiro descanço, ficha limpa, sem credores ou fiadores
como voltar a ser criança mas com consciência
sem advertir ainda o julgamento que nos aguarda
largamos tudo como o moleque que fez merda e foge
para dentro de um tribunal que pensava desativado

costume

Fizemos um albúm adorado pelas multidões e no 2ºdisco
decidimos enveredar por uma senda mais pessoal
e provavelmente não tão apelativa

certamente perderemos alguns fans

escrita automática

às vezes é uma palavra que dispara
uma palavra ainda pouco burilada
e que nos leva pela a mão a conhecer novos prados
onde invariavelmente sentimos que já pisamos

19.3.15

Apoteose

É do Cacém mas queria viver em Benfica
è de Benfica mas preferia Telheiras
É de Telheiras mas preferia o Areeiro
É do Areeiro mas sonha com o Rossio
Está no Rossio mas a alma vive em Sintra
e de Sintra ao Cacém
de Sintra ao Cacém não existe nada
Só talvês o Algueirão
durmo nas tuas mercês
que sou de Chelas não vês?

Reparem como falo do amor
pintalgando tudo com verosímeis detalhes
o nosso amor tem a ver com maços de tabaco
e cimenta-se na trafaria
e os nossos jogos de bilhar oferecem
material para cândidas metáforas

cravo a tudo em ambiente urbano
se me aproximo da tradição só pode ser mentira
estudei num liceu fudido
e lavrei com os cornos num macdonalds de Aveiro
nunca aplico filtros no instagram
nem no nosso amor
se é na fonte é na fonte
se é no bueiro no bueiro seja
e as praias devem ser povoadas
e a solidão só se encontra de madrugada

em jeito de despedida

escreve na terra seca com o dedo molhado na saliva
e o pó levanta-se como uma nova lei
ou escreve com a unha mais crescida do dedo
como um cigano
escreve entre gemidos sob uma pauta de ódios
escreve com os olhos cheios de sangue

Só flores agora e coisas belas céus extremamente abertos
com passagens de cores que me arrancam suspiros
animais pequenos de que ninguém tem nojo
todas essas beldades gratuitamente na minha frente
aperfeiçoando a minha tarde
e vários jantares encomendados representando
gastronomias de diversos pontos do orbe
sem pressões
imagino-me esfregado em mil massagens diferentes de acordo com diversas técnicas milenares
e roupas todas de tecido cru
e uma casa simples com vários pátios em que se vive mais lá fora que dentro
perto de cascatas e vistas e paisagens de tirar o folgo
e dinheiro para sustentar tudo isso sem que ninguém saiba de onde ele vem
e o aconchego de várias religiões que me pedem doações pelo correio prometendo-me paz interior
e acariciar todas as catástrofes naturais, banhar-se em água de tsunami
secar o cabelo numa tempestade de gafanhotos, aquecer o chá em lava viva
gritar para ouvir o eco em crateras de permafrost
e ter vários filhos com todas as mulheres importantes e ensiná-los a ler
e ter vários projetos artísticos
e um corpo de Adónis e conviver com tecnologia de ponta
e argumentar com os donos do mundo
e estar sempre feliz

18.3.15

congratulai-vos nas assembleias de destroços

Quero fazer artes mas também quero ganhar pilim
viver decadente não me atrevo que tenho uma boa família para manter assim a sim
e perante a qual devo manter uma imagem de bastião de segurança ar de senhorim
peito feito


Se pudéssemos fazer do nosso desalento dinheiro
e da nossa ânsia de felicidade alegria
empastelamos demasiado os nossos caminhos, porcaria
por pisarmos vezes sem conta na mesma lama
e só vemos o reflexo do céu numa poça turva, caramba
que brotou do nosso suor lacrimejado

Mais que estudar prepara-te para seres fudido
aprende a estar calado e a trepar no que te é devido
anche te de raiva por quem te rodeia
mas sem ser reconhecido
fui ver fui ver a tempestade
que caía o céu a magotes
e na terra meus melões tão franganotes
ameaçavam morrer, crueldade

aprenda a ilhar-se
deixe cair os destroços à sua volta
e feche os olhos de nuvens e chova
sobre a sua mulher, propague-se

O barro invade as nossas ruas
não preciso de dizer que calamos de espaldas recurvadas e nuas
não temos ódio mas medo de quem nos governa
de vez em quando paramos para fecundar a terra
a terra tropical empapada de sangue de quem sempre se ajoelha

Bones

deixo os móteis em fogo
uma ardência nas candurosas bocas brandas
levemente babadas
e passo jingando o molho de cordas chicoteando as latas de lixo
chuto o ar epilático das costas salto numa só bota com a outra perna esticada como o angus
e atiro o meu corpo contra as vitrines de noite
encharcado de amêndoa amarga morna tragada como se fosse leite podre
jamais me defino jamais me definho jamais me dê filho
jamaaaais me dêÊÊ fino
deixem emancipar-se a juventude deixem que se instale a preguiça
vou de óculos escuros cruzando o imaviz 4 da manhã de segunda
sem nenhum osso partido no esqueleto
um swingar de flippers
falando com as lixeiras e os postes
um medo dos crimes
mas sentindo-me um rei cigano

Já perdi tanto dinheiro que sei lá o que mais fazer para recompor a vida alguém me ajuda?

bemvindos sejam à minha humilde residência
estou  aqui para vos encantar com a as minhas ideias
as loucuras da minha cabeça

de tanto vivermos o mesmo dia
sufocados das mesmas espaldas
travancos e enxurradas de merda sobre os ombros
esquecemos que habitualmente vivemos
passo a passo como automatos
somos cada vez mais virtuais
fotos sempre com o mesmo sorriso
de redes sociais memórias de férias
e praias que já nem existem

estamos cada vez mais convencidos
à força
dos benefícios da higiene, do desporto,
das dietas, dum certo calculismo
e de abraçar sem pensar e com um sorriso rasgado e estúpido
a esfarelada moral pública que tentam colar nos nossos ombros e panturrilhas
como a areia da praia
e vamos vivendo nestas cidades
nadando para ultrapassar quem quer que seja
que se foda se meta à nossa frente no metro
e empilhamos as faturas de contas unicas cartas que ainda nos enfiam no correio
sobre as mesas compradas no IKEA que pagámos a alguém para que viesse montar
os ventos arfam constantemente nos escantilhões dos nossos apartamentos
como se dormissemos de janelas abertas
com risco de que se esbaldem os nossos filhos do 4ºandar
Lemos mentiras que contradizem mentiras
nos jornais
e habituamo-nos a desconfiar dos sentidos dos dizeres e das teorias
afavelamo-nos em tijolo e concreto com arame farpado nas beiradas
e desligamos o celular para ninguém nos incomodar
os violinos deixaram de nos comover com os seus lamentos
talvez nos abalemos se virmos um corpo baleado na calçada
mas não abrandaremos o passo
flagelam-nos a visão de animais maltratados por não se poderem defender
incapazes de prever o futuro e tomar as rédias de algum futuro
confiamo-nos aos tarots, signos e listas de supermercado
e como as crianças no infantário ou formigas na bancada da cozinha atacamos em grupo
tudo o que nos parece bom
nada pode ser bom para ninguém porque todos devem participar do  sofrimento comum
e a quem se suicida uma estátua deve ser erguida

mas não nos deixemos exaltar pelas emoções
mantenhamos uma certa ironia
uma certa pose de indiferença
de inexpugnabilidade
todas as formas de um homem se queixar e dizer mal já foram usadas
e sinto sempre que estou a desperdiçar tempo

ou deverei experimentar um alvoroço mais polokiano
como quem chicoteia o espaço

Corcovado

Os seus olhos eram tão separados como montanhas
e o processamento das duas verdades levava séculos
a serem fundidas quando do seu pensamento brotavam
horizontes de granito meticulosamente cristalizados

a bruma nunca ninguém a soube explicar
do verde das escarpas destacavam-se remansos
de amarelo e vermelho das lindas mimosas e Ipês
que emergiam para respirar do casaco húmido da floresta

Vibroprensado

piso vibro prensado
cabeças vibro prensadas
colchões estafados sobre a caruma
perto do complexo industrial
corpos peludos de macacão
carne desidratada e trocos no chão
espécies ameaçadas
anfíbeos mutantes óxidos estafados nos córregos
de cores psicadélicas
infecções urinárias feridas de mijo
caciques de mangas dobradas chegando e partindo em carros brancos
pó encobrindo tudo das nuvens entre os brônquios
charros unhas amareladas estruturas metálicas difusas
queimaduras no estofo do carro abandonado numa berma descalcetada
as borboletas pipocam nos todos de competindo em estridência
com as vagabundas flores amarelas
apercebemo-nos das manhãs e dos crepusculos
o resto dos dias é um limbo cravado num armazém com cheiro a diluente
e charros e comida nebulizada até aos vórtices do vómito

17.3.15

Casa na Cova do Vapor

comprem-me uma casa na cova do vapor junto à praia
onde eu possa ouvir o hiphop e fazer uma churrascada
onde eu me possa poluir junto do tejo e sentir português
deixe de sentir qualquer urgência mergulhado no atlântico


dêem uma casa com vista para a menor praia
perto da rua onde os carros só transitam de madrugada
perto da mata perto daquela rua com nome de número
perto da vista para lisboa e destroços que boiam na areia


dêem-me uma casa mais operária onde possa ser de novo adolescente
uma casa com quintal na rua perto daquele chaço estacionado
com skyline de chaminés com vozes de português mais frugal
com o pescoço vergado pelo peso do estado

com mais ódio pelos que dirigem sem compaixão este barco

Entre Nós e as Palavras

Ao Mário Cesariny

Entre nós e as palavras morre toda a gente
à palavras candeias que seguem à nossa frente
à palavras nevoeiro que se esfumam e não têm limites
e à palavras dentro das palavras que se multiplicam como bolhas de sabão
entre nós e as palavras à poços lavrados na rocha que nos engolem por noites inteiras
por que nos levam por escadas que só descem e que desaguam em esplanadas
onde de longe em longe nos cruzamos com uma pessoa e as paredes não têm forma só escadas que se precipitam na vertigem sem fundamento
à palavras centelhas que nos dão esperança que abrem remansos na cascata dos acontecimentos
são como fotos ou pinturas ou esculturas que nas partes baixas nos dependuramos
á palavras de indústria que nos arrastam em tristeza ritmíca e geométrica exponencial que nos vergam
entre nós e as palavras abruptamente, lágrimas que caem profusas sem entender
formando cascata
entre nós e as palavras futuros que nos furam as palmas das mãos e nos arrastam como grilhões
à palavras aliança que nos laçam em contratos e mentiras se nada as confirma
à palavras mentira que nos envolvem em sufoco e se liquidificam geladamente
entre nós e as palavras à angústia e espanto porque são como milhares de gavetas
entreabertas donde saem baratas, pó e farpas de outras letras

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...