“Em ficção é quase impossível escrever sobre a graça sobrenatural.
Só abordando o tema de forma negativa.
A graça não se pode experimentar em si mesma.
O único que podes fazer com a graça é mostrar que está a mudar a personagem.
Todos os meus relatos tratam da acção da graça
sobre uma personagem que não está disposta a aceitá-la…”
1.6.08
Flannery O’Connor - Cartas
Comité Central
Espero por ti há porta da cabine
Das fotografias de passe
Vestimentas tribais
Olhares esbugalhados
Não somos normais desde o sorvo
De Maldoror
Prá apimentar a febra
Cubos e cubos de carne
Sobre o assador
Loiça craquelé
Averiguou se as mãos não teriam manchas de sangue
Calou todos os sons da urbe externa
Gritou até sentir nas cordas vocais um ardor
Do calor em brasa os colants
A textura de areão grosso
Cravada na banha dos braços
De noite entre as tabernas
Um deleitoso furor
Dependurada do telheiro
Os sóis brilhando em tudo
Mas mais nos cílios
Pestanas e cabelos
Meu amor
Juntou a sua à voz do tordo
E chora sem consolo
Não não chora
Morre
Não não morre
Gozo
Gozo desta trampa de poema
- que aborto.
Diniz Giz
Crimes #1
Sempre achei piada – sabem?
Sair de casa sem
Dizer nada a ninguém
Abandonar os domínios
Só para abocanhar uma pita
2 graus 2º o painel publicitário
luminoso no topo dum prédio
as cancelas iluminadas por baixo
e ao longe são naves os sinais
é família que se junta à noute
debaixo das suas asas sou mais um filhote
Jerusalém na boca mais que na alma
No transistor o kizomba brama
Estranhos marulhos
Entre os arbustos
Todo o betão estranhamente
Em profundo silêncio
Mas não fiquei sossegado
E comecei a sentir-me observado
Quase todas escabrosas
Cometas na noite memórias
Kostoglotov o traga-ossos
Seres escondidos em poços
Das penumbras de grutas uma visão
Onde embatemos cegos com aflição
Fagulhas inertes em caves mal oxigenadas
Que brilham sem chamas
De casa e morri de susto
um rosto branco dissolvido no escuro
mas nas veias gelou-se me o sangue
e de alma evoquei todos os santos
tremendo mas sorrindo
relembrando o episódio agora findo
Ainda que sepultada no profundo breu
Nem sequer os anjos do céu
De Marco Íris morto na secretária
Do seu quarto
Espetada nas costas
E um sorriso espetado na boca
Paulo Ovo
Morte ao Sol
Atormentámos o poeta
Obrigámos a fonte a jorrar
Sim rapaz merece ser escrito
Símbolo de estupidez humana
Que se lamenta do tempo passado
Sem tirar todo o proveito
De alguém que já não está connosco
Mas deixo viver as aranhas
No meu quarto
de cada lado
Munido das tabelas
Matemáticas deporá
O seu coração num prato
Para alimentar as víboras?
Atormentámos o poeta
Obrigámos a fonte a jorrar
Atado a um poste
no meio do deserto
vimo-lo secar como um sarmento quebradiço
todo o sangue, escorreram todas as lágrimas
secou toda a saliva e o suor das axilas
até que chegaram as miragens e a besta falou
até caírem secas as miragens
e por fim o próprio sol secou
e desintegrou-se em pó
o poste que sustinha o profeta.
Orlando Tango
Grand Theft Auto 9
Você ataca
Eu te ataco
Você ameaça
Eu bato
que entra e determina
mandamentos prá geral
mas aqui ninguém se inclina
só por que você
domina o capital
pro pro pro pro pro pro progresso
Somos bestas portentosas
Não conhecemos os limites
Da força, da razão, do juízo
Esmagamos os sonhos da multidão
Separamos famílias
Um para o Brasil
Outro pró Japão
Na disco mais podre da região
Filmes berlinenses e corridas de moto-cross
Em gigante e plana televisão
Empregado de bigode e laço
Bigode e laço o que é que eu faço?
Você ataca
Eu te ataco
Você ameaça
Eu bato
Rui Barbo
20.5.08
19.5.08
Haceldama
Haceldama
Submergiste a imensidão dos teus caprichos
Com o bálsamo do seu amor
Colado à pálpebra dos olhos
O abismo entre Lázaro e o Rico
É grande mas na terra era pequeno
Ter sido os melhores
E os melhores os priores?
Também lanças trigo bom para debaixo da terra?
“O coração é tudo o que há de mais astucioso.
E não tem cura.
Quem pode conhecê-lo?
- Posso Eu, que sou o Senhor: penetro os corações
E aprofundo os sentimentos, conforme o fruto das suas
Próprias obras”.
Um gesto pode inverter uma atitude
Bastava um pão dum lado e uma migalha de ódio
Do outro e ao contrário perante o abismo ficariam
Abismo que era um portão
O coração é tudo o que há de mais astucioso
Ou no triclínio sob tectos rebocados
Sempre sentiremos repugnados
As lambidelas dos cães impúdicas
Nos lambuzassem os olhos
E deixássemos de ser cegos
Amicus Dei essem si voluero
André Istmo
Flutuante
Tenho de me vacinar todos os dias
Elevar a comoção até ao céu
E chorar inconsolável
No escuro da sala de cinema
Rodeado de artigos americanos
Engastado num conforto aburguesado
Que me faz dançar nos halls
Em pedra das empresas
Assisto a secretárias apaparicando
Ao patrão errado
Ensoparam o cacto de plástico
6ª feira dourado cara e casaco
Ofusco a plateia sou promíscua
Lantejoila
Pões no canal dois
E intelectual serei
“Amo ergo sum em justa proporção”
Mas se Zappas fico com fome, sou assassino,
Choro fungando a colcha
E incorporo ideais até ao fim da vida
E faço chacota
Do meu vizinho do bigode escafiado
De tanto chorar
Pelos emigrados filhos em Espanha
Marco Íris
17.5.08
Meditação Oriental #2
Já em criança sustinha
A respiração com medo
Das doenças ao passar
Pelo talho entre as carnes
Onde cospem as varejeiras
Filipe Elites
Afago o Grácil
Uns palmos a mais e tinha vista do mar
Ando com uma defloração no cotovelo
Como escamas talvez da veia marítima
Bebedeiras em bares mal-afamados
Venho curá-las a casa
com lamentações
uns palmos a mais
maldito cotovelo
Sentado de perna aberta
Na retrete
Mando grandes arrotos para acordar
A vizinhança
A bezana, o reflexo do azulejo
A intermitência
Do néon no espelho
E o balançar do badalo do autoclismo
Sacodem memórias
Senão todo, pelo menos parte do filme
Da minha vida
E ainda algum recheio.
O álcool benfazejo
anestésico
De queixo caído quase babado
Abre as comportas ao grande rio de ideias
luminescências, relâmpagos,
Conceitos morais, projectos de vida
Agoniado com o cheiro na roupa do tabaco
Apoio a cabeça ao toalheiro
Bem poupo no uso do papel
Higiénico
-Dobra e volta a usar-
Afago o grácil
Onde estão os pátios
À noite sob o céu de Verão
Onde está tocador do alaúde
Ainda não cheirei a ambrósia
Onde se esconderam as garotas das saias
Compridas e os decotes enfunados
Onde estão as palmas
Espeto a cara toda na almofada
O pijama e a barriga para baixo
A neblina sai do corpo e evapora
A cabeça
Anestesia geral e sonhos
Pelos becos fora
Diniz Giz
Sem paráclito
Toda nua
Na manhã chuvosa
Deitada no viveiro das trutas
Olha o céu desfocado
Bebeu dum trago o leite
Estragado o coração amargo
Chora pelos cabelos
Água e lama
Alma poroso esqueleto
Sem paráclito
Lambe no gelo
Os reflexos perdidos
Lúcia
Meditação Oriental #1
Deixó fuçar um pouco mais
No seu vómito
Não vês como se diverte?
Mas se vires que se afoga
Estrafega-o pelo cachaço
E esbofeteia-o até acordar
Olhará para ti como o seu salvador
Lúcio Ferro
Under Pressure
Estuporadas meias têm um elástico
Tão forte que no final
Do dia parece que andei de grilhões
Dos sulcos na barriga das pernas
E com os pés inchados
Filipe Elites
13.5.08
Resgatai-nos
Afogados entre lajes
Passos ecoam em labirintos sombrios
Incontáveis escadarias e patamares
Torres de pedra esquecidas
Baldaquinos empoeirados
Dominamos alguma matéria
E ao final do dia
Ao som de sintetizadores épicos
Imortais depositamos nossos corações
Em redomas de cristal
Resgatai-nos!
Com a diferença de séculos ou horas
Chegam de longe através
De fundos rasgos na pedra da fortaleza
Sons infra-humanos
Zé Chove
Razão e
1 de cabeça pra cima
outro de cabeça pra baixo
patas com patas vão-se debicando
vergando o ramo
Carla Corpete
4.5.08
Entre Arbustos
Entre arbustos de humidade frondosa
Escondidos pelo final da tarde
Estreitamos pétalas de rosa
Entre a língua e o palato
Como se cometêssemos pecado
Entre o púrpura e o amarelo
Encontramos rostos salientes
Ora nos são carícia ou flagelo
Concatenam nossa vida elo a elo
Lúcia
Corpo e Alma
Parti do centro do livro e fui
escrevendo em espirais
cada vez mais longe fui
rabiscando nas esferas siderais
envelopes lacados
vários utensílios de escrita
linguagem supersónica, transcendental, hieroglífica
pela fresca
a árvore solitária
a única na terra
reminiscências de distúrbios
do foro psicossomático como
fogo que segue lavrando
nos interstícios das paredes
várias horas após a circunscrição
do incêndio.
bico de íbis glamourosa e perigosa
sentada entre lençóis secando
no estendal e eu desramava a árvore
Arnaldo educado nos círculos
mais oblíquos da sociedade partiu
o copo de cristal de Murano
com a dentadura
Síndrome de Koestler ou efeito de Kropler
- Atrapalhação. Chegou-nos o estampido
do copo a estalar através
da sombra do alpendre
A matéria
Mas por mais que meditemos ou escrevamos
- Opá – Espetei de novo a cavilha na granada
Mas não deve resultar –
O espírito é um mau barro
Por mais voltas que dê o oleiro
Jamais será moldado
Paulo Ovo
2.5.08
Bucólicas
Num plácido domingo o cavalo
Do meu primo comia no pátio
Uma mecha de loiro cabelo
E os fios abafavam-lha traqueia
Deitado na tijoleira da cozinha
Encontrava conforto hipnótico
O serrar das cigarras no jardim
Boiavam calotes de laranjas
E metades de porco-da-índia
Marinando para a janta
Diniz Giz
Dos Beatles
Sucedâneos de beatles maravilha
Das maravilhas o psicadelismo
Pop elevado à enésima
Potência pensada
Para agradar melodias
Verdadeiramente melodiosas
E ritmos metronicamente
Estudados por favor
Não larguem perto
Das crianças que podem ficar
Perturbadas
Marco Íris
It's A Kind Of Magic
estas pedras da calçada estão coladas
com pastilhas elásticas
na infância bebi champô
e comi baton
toda a tarde debitando
patranhas e ridículos planos
tomando concentrados de estupidez
arrotando como alarves
debatendo temas cada vez
mais sinceros – travertino – uns com os outros
e no final do mês
o total da despesa
enviado foi um enviado
que dominasse as nações
cresceu a flacidez debaixo dos braços
escrevo esta carta final
antes dum banho relaxante
estou todo pegajoso
nas zonas onde dobra o corpo
todo o dia não me saiu da cabeça
que a justiça é a mais cabal
prova de existência de Deus
Ela escrevia como os esgotos
desaguam no mar
chorámos juntos pelos pobres
comunistas e socialistas que ainda esperam um salvador
passam as noites tentando salvar o mundo
enquanto caem à velocidade da luz num poço sem fundo
vêm tudo rapidamente e não agarram o tempo e não sentem dor
estou aqui nesta alcova
quase beijando estes novelos de lã
beija beija antes
que seja selado o féretro
beija sem desmaios não se sobressaltem
os demónios estás perto
de completar o mais perfeito ritual
as formigas soluçam de dor debaixo da terra
unge toda a horta com escarros pagãos
Religiosidade e bem parecer?
Saltitas com cara de santo
roubando no supermercado
tiras de bacalhau (seco)
irritas-te com os filhos dos outros
se não se calam...
Entrega cabal exige-to protocolo
Em cada minudência
Aplicas toda a tua sabedoria
Mas não fazes as coisas ao acaso
Abdica, abdica, abdica
Ecoa o poço sem fundo
Engole a pedra e não devolve o som
Talvez já não haja vida...
Orlando Tango
15.4.08
HOMEM PARA DEUS
onde morrer um pouco toda a morte que o espera
Se é ele o portador do grande coração
e sabe abrir o seio como a terra
temei não partam dele as grandes negações
Que há de comum entre ele e quem na juventude foi
que mão estendem eles um ao outro
por sobre tanta morte que nos dias veio?
É no seu coração que todo o homem ri e sofre
é lá que as estações recolhem findo o fogo
onde aquecer as mãos durante a tentação
é lá que no seu tempo tudo nasce ou morre
Não leva mais de seu que esse pequeno orgulho
de saber que decerto qualquer coisa acabará
quando partir um dia para não voltar
e que então finalmente uma atitude sua há-de implicar
embora diminuta uma qualquer consequência
O que Deus terá visto nele para morrer por ele?
Oh que responsabilidade a sua
Que não dê como a árvore sobre a vida simples sombra
que faça mais do que crescer e ir perdendo as vestes
Oh que difícil não é criar um homem para Deus
Ruy Belo, TODOS OS POEMAS I
Convento dos Capuchos
palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...
-
Entre 1241-42 os mongóis invadiram a Hungria. Lamento pela Destruição do Reino da Hungria pelos Tártaros Escrito por um clérigo da época. Tu...
-
palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...