23.6.08

Vesga de Amor

Tão vidrada estava em seu amor
Que os olhos embicavam para o meio
E quem olhasse no momento do beijo
Pareceria meio vesga sim senhor

Beijavam-se furiosamente
Mas sobre o ombro do rapaz
Fixava meus olhos melosamente
Porque nada a satisfaz

Beijavam-se não havia mais ninguém
Saía eu do metro prá cidade
Toquei-lhes os ombros com cumplicidade
E sussurrei esta é a vossa paragem

Mário Mosca

Tá Tá Ok Já Vou

Só não vê quem não quer
Quem não crê não é bom
Não é bom nem mau
Se o sol se põem atrás do mar
Eu estou atrás de ti

Só no mar o sol se põem
Pra quem tá ao pé do mar
Mas se tás ao pé do rio
O sol no rio se irá deitar?
Só se o sol fosse um navio

E o rio um céu sem sol
É que sol há um só
Nem no céu voga o navio
Mas o rio faz o mar
E meu navio foge do sol



O meu pai não é teu pai
O teu pai não é meu pai

Oh a luz de tê-la por mãe

Só a dá a quem quer
A luz
Só a dá a quem quer
Mas e quem não a tem
Quem é que quer
O que não tem se não viu
O que se lhe dá
Quem dá o que não tem
Quem vê o que não tem
Doi te mais a dor se estás só
Sim ou não
E mais não diz
Vês o pó que cai do céu
Cai de pé sob esta mão que vês
E dá –lhe tom de pó
Um a um cai grão a grão
Sob a mão de pé

Pão e sol
E ar e luz
E mais não quer
Vai mais o cão
Sem pai nem mãe
Com fé em si
Nem pau nem croa
Ao sol ou sob a lua
Lá vai lá vai o zé
Com pó nos pés

Sol e sal e cal
E sob os pés é pó mais pó
Vi a luz sem fim
Vir sobre mim
Sim ou não e mais
Não quer o Deus dos Céus
Sou réu do mar
Pus as mão nas suas mãos
A vi vir a mim
Um som que vem da sé

Dou um nó não dou

Filipe Elites

A Praia

A praia mais cheia de gente que de sol
E a certeza de que ali entre a multidão
Se encontra o meu assassino de crianças
E sinto o calor no lado direito do peito
Onde guardo as fotografias do massacre

E franzo os olhos do sol imaginando
Como se parecerá tal demónio
Tantos de cara bonacheirona felizes
Tantos com cara de sono paspalhos
Tantos de modos que me levantam suspeitas

Percorro as várias praias de pontão em pontão
Tudo cheio até ao final do dia
Depois esvaziam-se as praias enchem-se-me as ideias
O sol vai baixo e a maré baixa vai
E o espaço à minha frente enchesse de espaço
Dilui-se a multidão – quem será o assassino?

Vou tão absorto em meus esquemas
E teias de estratagemas que me
deixei apanhar pela noite
longe do carro e da civilização
e de certo o ímpio sabe quem eu sou
centenas de metros entre dunas e o mar

totalmente envolto em escuridão
dos meus medos oiço com clareza o coração
mas o lamento rouco do mar
abafo os passos clandestinos na areia perdidos
e na noite sem lua todas as dunas
são corpos onde resignado me deito
para a fotografia

Paulo Ovo

22.6.08

Shoppers Drug Mart - Sam Javanrouh

Archivo de imagens #116

Lisboa IV

Mais uma ladeira extenuado
quebra-costa ao sol apontado

travessa empinada
escada de sombra
vira rua de sol
onde pastam pombas

com os pulmões de fora
do alto miro Lisboa

Amanso toda a cidade
entre muralhadas colinas
de olhar cristalizado
às telhas no sol reflectido


Lúcio Ferro

Lisboa III

à espera ansioso,
no chão de pedra estalam os meus passos
perdidos
na escura solidão deste beco
perdido em lisboa
neblina fresca esverdeada
agarro mais um cigarro
pareceu me ouvir o teu sussurro
puxo o cabelo para não ser vencido
pelo sono que hoje é inimigo
e vivo este sonho alegre e misterioso
estarei contigo?

Manuel Bisnaga

Lisboa II

Neblina negra, densa e fria.
Molho os lábios de sede,
na língua ressequida.
A dúvida donde estou...
Vagas lentas a morrer.
A luz verde corta o breu.
Passos incertos no asfalto.
Vislumbro desfocados,
antigos pavilhões industriais.
A madrugada não deve tardar.
Nos carris de ferrugem abandonada,
uma carruagem em mau estado.
(sons estranhos de novo)
Estou sozinho.
Dançam melodias na memória
e um desfile de caras conhecidas.
Vou pesando a vida,
numa balança apodrecida.
Um tom laranja no horizonte
desponta pálido atrevido.
Para afastar o sono, assobio,
falta menos pró meu destino.
O rio sereno e adormecido,
vai me encantando,
fluindo de mansinho.
As pernas ganham asas,
no cansaço mecanizadas.
Ao meu lado um tanque gigante.
O sol nascente faz brilhar,
de azul intenso o Tejo.
Um halo róseo pinta a neblina,
ganham contornos as fábricas.
Acordo de súbito dos meus sonhos,
outrora negros e sombrios,
ganham esperanças e sorrisos.
Um carro em sentido contrário,
fulgindo do sol matutino.
Nuvens d'ouro no horizonte
e na alma uma doce paz!

Zé Chove

Lisboa I

Manhã solarenga de inverno em Lisboa
Uma
luz que cega os olhos e atravessa a alma
O frio aguçado separa todas as vértebras dos corpos

Caminhando de queixo levantado meio adormecido
Fantasma soprado no holofote matinal
Entre brumas temblorosas no quintal


Lúcia

16.6.08

Ante-ante-ontem reparámos...

Este blog faz 100 anos!
Parabéns aos colaboradores
e mecenas espalhados pelo
mundo inteiro!

Lúcia

4.6.08

Sermão Danado

Dois demónios rondam a vossa casa
Um tentando os vossos pais
Outro ronda os caminhos assustando
Os vossos irmãos

O prédio mudo é sua mansão
Sussurra baixo a decrepitude
Cego à avenida em agitação
A natureza camuflou-o

Veio até mim em sonhos
Um sagrado turíbulo
Argêntio pêndulo
Mil cornucópias de ouro acrisolado
Inalei o fumo de carnes
A multidão de criaturas imoladas
Entre gemidos brasas negras
Densas como leite condensado
Tingido de sangue e ferrugem
Incenso de dor em nuvens
Do bálsamo de vida sobre as brasas
Um querubim remexe com os dedos
Pouco articulados de bebé
As cinzas putrefactas
Que poderiam encher uma sala
Rescoldo duma existência
No fundo negro do turíbulo
Flutuando de asas cada vez mais cinzas
Com um suspiro encontra fio de prata
Retesado como um aguilhão adamântio
Eleva-se nos ares…

Do púlpito atiço a multidão
Oh monte de sargaço informe
Que atordoas até as moscas
Com teus humores de podridão
Acorda!

O ser que em nós jaz
É Deus quem no-lo dá

Mergulhai em sangue e mel
Sem vos afogardes
Contemplai tudo com a brandura
Dos gestos subaquáticos

A fúria da mãe leoa
Protegendo os filhos
Dos babuínos

Vede a sociedade
Sob os nossos pés que pairamos
7 moças gordas e 7 magras
mas são as mesmas 7
7 gordas e 7 magras

Quiseram ser nossos mestres
E nós sem querer deixámos

Toda a água benta derramada sobre
A pele evaporou-se com o barulho
Dos fritos e efervescentes nuvens de vapor

Sim! Porque é que hão-de obedecer se não entendem?
Atrevessou-vos de olhar febril amarelo líquido

O sofrimento e o medo
Doenças de estábulo
Que vos atacam humilde rebanho
Já as ultrapassásteis
Descobri agora a verdade


Zé Chove

3.6.08

Escravas Nipónicas ou Filipinas

E o mandarim teria
Servas pequenas ao seu serviço
Criaturas cristalinas como um pingo
Anunciariam sua chegada com um suspiro
Envergando túnicas de branquibrilho semi-translúcido
Autênticos esfiapos de nuvens
Vasis fictilibus silhuetas de clepsidra
De sorrisos glicínios e ventres níveos
Simples arrefeceriam
Seus lençóis de puro linho
Com seus pezinhos frios
Vaporosas brisas do minho
Deporiam seus lábios
De impintável valor lumínico
Depostos como bicos de passaritos
Aligeirando os seus sentidos
E os dedos enluvados de tricots argêntios
Em doces esfregaços
Com chá exótico
Tílias raras, ibiscos ou ginsengos
Purificariam o espírito
No seu íntimo
E seus cabelos
Noite de rios opalinos
Nem à luz oferecem inércia
De tão finos
Uma cáfila de ouro de Ofir
Por um só fio
Um merlim das arábias
Virá pedir

E o mandarim
Dará abrigo
A tão preciosas meninas
Sob um docel de pura ceda da China

Nicolau Divan

Meditações Orientais #3

Afãs – onde se ajuntam os abutres
Lutas corpo a corpo – é no coração
Passavas e escapou-se o panfleto ao pára-brisas

Filipe Elites

Colecção de Textículos #5

O que mais me pesava era a sensação de que alguém me abandonava,
de que a memória também acabaria por abandonar-me,
e que, embora eu quisesse concentrar-me, tudo inspeccionar,
tomar todas as precauções, calcular os meios de me salvar,
não podia, não sabia fazê-lo.

Dostoyevsky - Diário de Raskolnikov

Pesca no Mar Alto

Archivo de imagens #112

2.6.08

Servo

Não me deste
Todo o tempo neste dia
Para fazer o que queria
Nem sequer chegou o tempo
De a tua vontade alcançar
De estares comigo
Deitei-me pois sozinho
Com a sensação
De a dois senhores ter servido
E sem senhor no coração

André Istmo

Passo as Mãos

Passo as mãos pela chuva
Depositada no peitoril
Da minha janela
E esfrego a essência pura
Das entranhas da terra
Pelo meu pescoço funde-se
O espírito do mundo
Com a alma humana
Num gesto profundo
E todavia meditado
Para derramar numa poesia


Lúcia

Eusébio

Archivo de imagens #112

Selecção Nacional Euro 2008

Bife cru ao vento no mastro da bandeira
Leão sem unhas nem dentes vageando
entre os transeuntes do Chiado
Garoto arrancando uma sobrancelha à dentada
Comer um termómetro
Ferro de engomar atirado a ferver para arca
congeladora cheia de peixe semivivo
Homem cuidadoso chegando tarde a casa pisa
sem querer o pescoço do seu cão e este morre
Uma praia paradisíaca ao final da tarde
atulhada de organizado material de escritório
Garota chega a casa do namorado
e vislumbra um rim de porco no cinzeiro
Unhas crescidas para dilacerar o peito
aos animais de estimação das ex-namoradas

Armando Scolari

1.6.08

Soehnée - Untitled

Archivo de imagens #111

13 de Março (x2)

Sim -13 de Março(x2) - também é esse
Mais ou menos o meu prazo
E até lá encarecidamente eu peço
Um fogo purificador que abrase
Qual luz e chama de crisol
Os escolhos e os folhos
Panejamentos e trapos
Que seguem atrás de mim
Como uma banda de aleijados
E eu os arrasto com medonha inércia
Pois erroneamente concluo não ser completo
Sem eles e sem eles não se erguer a sinfonia

Madalena Nova

Flannery O’Connor - Cartas

“Em ficção é quase impossível escrever sobre a graça sobrenatural.
Só abordando o tema de forma negativa.
A graça não se pode experimentar em si mesma.
O único que podes fazer com a graça é mostrar que está a mudar a personagem.
Todos os meus relatos tratam da acção da graça
sobre uma personagem que não está disposta a aceitá-la…”


Comité Central

Espero por ti há porta da cabine
Das fotografias de passe
Vestimentas tribais
Olhares esbugalhados
Não somos normais desde o sorvo
De Maldoror

Só uma linha ou duas
Prá apimentar a febra
Cubos e cubos de carne
Sobre o assador

Forçou a fina loiça dos pés
Loiça craquelé
Averiguou se as mãos não teriam manchas de sangue
Calou todos os sons da urbe externa
Gritou até sentir nas cordas vocais um ardor

Estremece ligeira
Do calor em brasa os colants
A textura de areão grosso
Cravada na banha dos braços
De noite entre as tabernas
Um deleitoso furor

O poço, a relva, a hera
Dependurada do telheiro
Os sóis brilhando em tudo
Mas mais nos cílios
Pestanas e cabelos
Meu amor

E ao final da tarde
Juntou a sua à voz do tordo
E chora sem consolo
Não não chora
Morre
Não não morre
Gozo
Gozo desta trampa de poema
- que aborto.

Diniz Giz

O Homem-Bala

Archivo de imagens #110

Crimes #1

Sempre achei piada – sabem?
Sair de casa sem
Dizer nada a ninguém

Custa um bocado a princípio
Abandonar os domínios
Só para abocanhar uma pita

Hoje estava frio
2 graus 2º o painel publicitário
luminoso no topo dum prédio

pareciam espadas jedi
as cancelas iluminadas por baixo
e ao longe são naves os sinais

a irmandade da roulote
é família que se junta à noute
debaixo das suas asas sou mais um filhote

ainda hoje choro ao comer shoarma
Jerusalém na boca mais que na alma
No transistor o kizomba brama

De regresso a casa barulhos
Estranhos marulhos
Entre os arbustos

Já o estacionamento
Todo o betão estranhamente
Em profundo silêncio

Tentei não pensar no caso
Mas não fiquei sossegado
E comecei a sentir-me observado

Flashes reflexos de histórias
Quase todas escabrosas
Cometas na noite memórias

Açaimes, cães raivosos
Kostoglotov o traga-ossos
Seres escondidos em poços

Estalactites de imaginação
Das penumbras de grutas uma visão
Onde embatemos cegos com aflição

Tudo são fantasmas
Fagulhas inertes em caves mal oxigenadas
Que brilham sem chamas

Aproximei-me do muro
De casa e morri de susto
um rosto branco dissolvido no escuro

o coração bombeou cavalgante
mas nas veias gelou-se me o sangue
e de alma evoquei todos os santos

agora no meu quarto ainda
tremendo mas sorrindo
relembrando o episódio agora findo

quem conhece melhor minha casa que eu?
Ainda que sepultada no profundo breu
Nem sequer os anjos do céu

Revirei tudo em silêncio…


Carta encontrada debaixo
De Marco Íris morto na secretária
Do seu quarto

Com uma broca
Espetada nas costas
E um sorriso espetado na boca

Paulo Ovo

Porto de Lisboa

Archivo de imagens #109

Morte ao Sol

Atormentámos o poeta
Obrigámos a fonte a jorrar
Sim rapaz merece ser escrito

A saudade lusitana
Símbolo de estupidez humana
Que se lamenta do tempo passado
Sem tirar todo o proveito
De alguém que já não está connosco

Eu mato as moscas
Mas deixo viver as aranhas
No meu quarto

O rio caudaloso com uma azenha
de cada lado

Quem é que
Munido das tabelas
Matemáticas deporá
O seu coração num prato
Para alimentar as víboras?

Atormentámos o poeta
Obrigámos a fonte a jorrar

Atado a um poste
no meio do deserto
vimo-lo secar como um sarmento quebradiço
todo o sangue, escorreram todas as lágrimas
secou toda a saliva e o suor das axilas
até que chegaram as miragens e a besta falou
até caírem secas as miragens
e por fim o próprio sol secou
e desintegrou-se em pó
o poste que sustinha o profeta.

Orlando Tango

Grand Theft Auto 9

Você ataca
Eu te ataco
Você ameaça
Eu bato

Cê está convencido
que entra e determina
mandamentos prá geral
mas aqui ninguém se inclina
só por que você
domina o capital

mu mu mu mu mudança
pro pro pro pro pro pro progresso

Somos bestas portentosas
Não conhecemos os limites
Da força, da razão, do juízo
Esmagamos os sonhos da multidão
Separamos famílias
Um para o Brasil
Outro pró Japão

O funk mais afandangado
Na disco mais podre da região
Filmes berlinenses e corridas de moto-cross
Em gigante e plana televisão
Empregado de bigode e laço
Bigode e laço o que é que eu faço?

Você ataca
Eu te ataco
Você ameaça
Eu bato

Rui Barbo

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...