25.5.20

mel coado

E aquele ajoelhou perante um papiro
E desfilou um ditado
Um outro mais à frente dormiu sobre uma biblia
Até nós chegaram uma pandilha de sermões 
Aquele viajou numa arca de tomos traçados
E espirrou gulosas aos bocados
Um outro mais adiante
Mergulhou numa biblioteca de classicos
E cagou epitomes e hemorróidas de mel coado
Um outro embebedou-se e invadiu um alfarrábio
E a nós o que nos foi dado


Junto ao mar

argumentamos por meio de sonhos e clarões
ilusões no meio de amena
conversa timbrada Somos os homens que as pastoreiam
deleite nos reguardamos nas calcárias
cavas junto ao mar
falamos às ondas do mar
até ao dia de esquecermos nossas
ossadas no húmido destes calhaus

viramos folha a folha em busca da lagarta
ingrata que nos destrói as plantações

sentados crostados na seca lhanêsa de pedra
vagueamos num bafo de sol e salitre
num reflexo dos chapadões que ardem as plantações

flutuamos nas ondas de calor
descendo a escarpas na ponta do bastão

Mansos

Impressiona mais a vida dos que estagnam
Que a dos que andam
Amansam-se no reconcavo duma coluna
Em contemplação 
Param o movimento da retina num opaco
Que mais ninguém alcança 
Dançam-se de pedra em valsa eterna
 E o pão é o seu alimento 
Tamborilam o ancho tempo
E o ocre das tardes distendem nos pátios 
Sua alegria perene
O ronco grave da vaca lavra-lhes de orgulho o peito
 E as suas carcaças de terra são o estrume crestado do campo
Pisam-nos! 
Mais firme se faz o terreno
Não os vimos partir
Arrastados no sorvedouro
Descansam no Rio subterrâneo 

7.5.20

em terra ou no mar

Sinto aqui nestas pedras de musgo
teu fôlego não abandona este claustro
nos ecos da nave me desce teu sopro
teu clarão no lago deixa-me cego

teu corpo eremitério por matas desterrado
velado por pios de corujas e sussurros
de animais rasteiros és tu também
na verdade tudo

foi santificado este berço
por todos os passos que os monges aqui rezaram
e por esta cruz de ferro que marca o tempo no pátio

e agora que tudo está abandonado
um grande silêncio que tudo varre

e agora que as carnes cairam
essa ossatura alva
aguarda uma vez mais
o teu divino sopro

_  _  _  _  _  _  _

Sentimos-te mais perto
se somos esmagados
e damos-te tempo para tactear
a tua cruz ao nosso lado

a angústia de saber que só Tu
não nos deixas sós nos mais profundos transes
se de desespero não estamos ainda tomados

A cada ameaça
de que o furioso mar
nos vá virar o barco

tentamos com brados rasgar
as neblinas e vislumbrar
tua túnica branca na margem
e gritamos
cada vez mais Alto

4.5.20

relação

Um estoiro rumalhado um silêncio
E depois um arrastado silvo
Que é a onda que retorna a roubar dos grãos 
Um último suspiro 
Tudo fica liso e rijo
Retesado
Aguardando nova investida

praia

Eram só praias
Simples praias 
Com seus mares brilhantes 
Tons azuis e reflexos 
Nas costas uma duna 
Com seus cactos rentes
E vento
A praia é esse corredor entre
O mar e a duna
Às vezes ao longe Vislumbre de escarpas 
Ou falésias que dão sensação de fim
Ou de continuação 
Que nos impele a andar
Está sempre a entardecer nesta praia
As ondas empurram um cheiro de mar
E as areias são tão pobres e fracas
Não sabem guardar segredos
Todas as noites são espancadas
São tão fracas
E essa moleza entorpece os nossos passos
Pedaços de rede, conchas partidas
Sargaços
Cheiro a mar
O entardecer é sempre ligeiramente frio
Sussurra mistérios e os nossos olhos
Principiam a preocupar-se que se esvaiem os horizontes
E o areal agiganta-se na sombra e o mar
Vai ficando negro
As casas de placa amadeirada dos pescadores
São os dentes que restam na duna que é uma gengiva mole
É sempre entardecer e as casas ficam mudas
O mar sova a areia com som de estralho
Ao longe o horizonte 
Caminhamos nesta areia que nunca esquece de quem nela pisou
Depois da duna há caruma e pinheiros
Todos mansos

Cortadas

Convivemos com a violência subtil
Dos vizinhos sem nos deixarmos explodir
Arrastamos os punhos pelas paredes de areão
Até que se esboroasse a carne 
E sangue escorresse pelas caixas do correio
Túneis que cruzam este prédio 
Condutas, escadas de incêndio e tédio 

As beatas esmagadas no monta cargas
As nódoas negras escorrem nas empenas
O osso engana também quebra 

Se não tem nome não me interessa 


A destruição grampeada numas ventas esfaceladas
São só drogas carne e uma faca

Visões que só alcança um bombeiro 
Naquele ápice permitido da desgraça 
Que se abre num vórtice momentâneo 
Dum telefonema desesperado

A intervenção age como agulha antiviral
Um clarão dramático que abocanha
E entra à bruta invertendo um destino

Agarra o corpo e sacode como se fora amada
A drogada que jaz trapo na escada mijada
Rebenta o corpo inerte busca uma explosão
Que a volte a sangrar 


2.5.20

sortes

Tudo são questões de sortes
Direções para onde se dispara
Primeiro
Só depois vem os labores
As graças para alcançar, o trabalho

Mas antes de tudo vem o sonho

Bordas da Tina

Palavras ecoam no silêncio
Que é eternal
Arde na seara sideral
Em ondas
Que retornam ao embate
Nas bordas da tina

Galopam de veludo em bola 
Com fôlegos de murmúrios 
Num banho que ganha energia 
A cada embate
Na poeira cinza e fria
Duma estante escondida
Perto da cozinha

E depois de demolidas as galáxias 
Há de crepitar ainda  um sentido 
Um significado de pedra
Na paisagem preenchida

E rasgada do seu contexto
Apartada de suas irmãs palavras
Enriquece de especulação e mistério 
Torna se grito solto eremiterio


22.4.20

T5

1 quando me lembro de qualquer coisa
Penso sempre que já vou tarde
E desisto

2 o sexo quer se impetuoso 
Como combate de M M A
Subúrbio corpo musculoso
Corte e besunte con'agua raz

3 pensa em tudo o que pensaste
Há pouco e não querias esquecer 
-desespero, pátios internos, Nietzsche, composição -
De que tudo é tão belo
Se a forma é natural
Que o que se esmerda ribanceira a cima 
Tem mais valor que toda a polidez e brilho

4 e as palavras que se arreglam em esconsos cadernos e exorbitantes canais
Estremecem na ânsia de virem a ser lidos
E acenderem algum turbilhão
Ou virem a ser castelo visitado por séculos de turistas ou ter as muralhas mijadas com admiração 

5 tanto podem ser as varandas como 
As cozinhas os locais excepcionais do encontro
Que sem serem a sala o salão ou quarto
Despertam a luxúria, sobrepõem nos á vertigem
E nos embalam no letargo das longas tardes de Verão 

10.4.20

saudades de casa

Sinta o descer e o levantar

Tomates de laranja
Emplacar o cu da galinha
Foguetes é tiro na cara 
Topete de rasta com olhos 
Recitar com cabeça entre as pernas

 De línguas e delongas um suave amarfanhar

Se cruzam as pernas
Mordiscam as pontas
Dançam os rabos 
Rabiscam-se os cantos
Dum outro formulário

Cria-la dura
Tudo aspereza e rectidões

Soalho engastado a xixi de gato
Sofá pardo lume baço um século de arrendados
Costas arquejantes como o velho armário 
Tão asmático grossas memórias que expectora

As frestas só expandem a largura do frio
E conservam tudo na cárie mal escovada
E são as melhores histórias às da velha
Que me deixavam tão dependurado
Fábulas, consiglieri pedroso, ácaros flutuando no sol do sofá ao fim da tarde

És uma conquilha minha tarde de verão
Brilhas nacarina do azul aluvião
E sob um negro pilão de ébano te enfarinhas

Oh tantas lágrimas abafadas nos trópicos 
Da saudade 
Espalhem serradura na estrada 

11.3.20

mantra ma boca

Afoga me a boca
À fogo na boca
Ah forçou tá boca
Há forte na boca 
Alorte na côca
A morte na soca
Amo-te cabocla
Amar te na boca
Deixar-te na doca
A sorte na roca

19.12.19

sobre trilhos

Esteiros secos de lama gretada
Os passos ocos sobre a Terra Sem nada

Aguarda espera a memória de quem nunca descansa
Porque a miséria afoga por anos a carcaça
O sorriso que desponta debaixo da coberta é um esgar uma conta bem dada
Uma cerveja a menos uma foda na taça 

Rasgo te novos labirintos 
Para que encontres pela freguesia

Todo o cuidado é pouco agora
Que o segundo alcança 
É a hora
Vislumbre de presas
Crava a lança 


Morna da Langorosa

Espirra-lhe o vinagre nas virilha
Silva lhe o cuspo entre os podres
Mal achados dentes

Desmaiam todos no barraco 
A fila da possessão 
Marram com as trombas no chão 

Lá fora macabros jacarés 
Resvalam nas tojeiras do esgoto 
Estridulam de amor a noite 

21.10.19

Lascas de Melão

Das 7 almas acrisolei 4
Outras ficaram couxas

Eclipsam se os sois nos abismos

A corola da flor em crescimento
Abana de um lado ao outro
Do universo
De autêntico diálogo 
Grego 

Não temos mais tempo
Esfarela-se a tarde em lascas de atum

Não me confundas mulher
Estou a filosofar
Não a morrer

Dentro de ti goiaba entumescida
Guina meu acordeão corpóreo 


8.10.19

Novos Adoes

Nas margens da linha do comboio
As canas de ribanceira
Plantações que nada dão

Combinações às margens da vida
Com vista pro outro lado da rua
Maçãs Pra cada Adão que te partem as costelas
Na linha do comboio

Comboios de moscas

Eu vi o meu amigo
Na estação de comboio
Eu viu e não lhe falei

As moscas andam de volta

Mas eu não as enxotei

4.10.19

Michi

Era tão fresco esse teu olhar ferino

Tuas cores dançando na luz da calçada
E ecoam até hoje sorrisos como vidros partidos
Nos mármores frescos ecoados entre as altas sacadas
Gira gira gira
Os folhos e os tornozelos
Gira o riso em dança líquido
Um clarão que banha e enfurece todo o jardim de alegria e grita cintila como as fontes que fervilham do teu abismo
Como um espirro de sangue em pleno Verão recortado em câmara lenta contra o céu mais azul assim tu és de vermelho
O gozo livre que põem os animais em alerta e me espicaça desde aquele dia

3.10.19

Faluas

Escuta como lançam seus maus olhados sobre praias de Verão e ondas onde não mergulharam
Vem tudo em movimento
Como que de lado
Tudo se lhes afasta lentamente com um fado
Numa eterna melancolia num espaço nunca habitado
E das suas vozes jamais sentirás o golpe
Porque tudo é fugidio e cinza e esparso
O mundo é estatificado e entre o cascalho liquefaz-se seu espírito de lágrima e cinza macerado

Segredos

Aprendeste assim a falar como eles
A deixar-nos em suspenso dos teus sopros
Desenhas te com um silêncio a curva dos seus cabelos?
E com um nó na garganta transmitis-te
Em silêncio
Que jamais chegaste a vê-los
Eram tudo sonhos
Pedras esparsas no areal que se estende até ao mar tão calmo
E o piar dolente de um pássaro embrulhado no escuro
É tão perfeita e dura a frieza da noite
Que um grito vem dum suspiro
E um novo sol
Iluminar um mundo

A Foz

Subiste até
Não teres pé
Beijaste a tona do mar

Teu corpo eu tomo
Deformado
Cos pés na areia do fundo do mar

Beijaste em mim o reflexo
Do sol que deito no mar

A Foz gasta-se no mar
Afogas Afogas te

Paz Animal

Vem quem traz paz
Pra mea calmar
Vem rapaz

Cachorro animal
Vendido
Por carinho.porcaria

18.9.19

Almerinda

Almerinda almendrada
Trastomba Flambêbada
Nas noite em beira estrada
Escalavra a meiavidro
Arreaça saia

Deslavra a barranca
E cospe sanga

30.8.19

Não o verão

Não o verão crescer 

não é assim com quase

quão todos os frutos?

Salsa o Verão solar
qual ventro na mesa
arrasão com o braço
a grão solta o ar

entre as tábuas da mesa de jantar
acumula-se um barro sem tempo
esgravata com palito e a perfeição
torna-se lixo nas costas

esquecidas da mão

o mesmo barro que solta
nas pedras entorno
na mesa da calçada
tanto pó e tanta chuva calcada

é só lama é só aluvião
é só sonho de  uma tarde
de verão

14.2.18

charrete

ai morreram burros
morreram cavalos
sobretudo lutos
não quero mais c(h)arros

Ruas

Há ruas que se calam à nascença
Serpenteiam e desaparecem
Há ruas gémeas
Ruas traçadas
Ruas de esquecimento
Há ruas que se fazem luz em suas calçadas
   
Ruas há que fluem como água pela escada
Há ruas que se enfeitam e desmascaradas
se mostram firmes de duras caras

14.8.15

RADIO

Volto a casa depois deum dia de trabalho no Rio. É feriado em Niterói e as ruas estão desertas. Os ventos correm na Amaral Peixoto e sinto-me ridículo. Só eu tenho emprego nesta cidade? Os vagabundos sumiram das praças que parecem maiores sem pessoas. As chuvas arrastam tudo o que é mole. A cidade fica dura e brilhante nem que seja só por uma noite. Subo o morro desejando ter abertura para que mais pensamentos e sonhos escorressem pela memória. Até nisso somos limitados. Não comportamos mais que 2 ou 3 imagem em malabarismo mental. Num setor pensava em Artur, Merlim e na Inglaterra pré cristã, no outro setor equilibrava um desanimo pessoal por não concretizar nada, noutro vórtice negro pairava a sombra das dívidas e via o sorriso negro de múltiplos credores e a dependência de trabalhar para patrões malvados, tentava empapar tudo num ritmo tipo doors – killer on the Road, de facto chovia como na música, a alegria de ter uma família rasgava-me um sorriso na cara, no centro do peito tentava compreender a angústia dos deportados para os gulags. Riders on the storm. O Nick Cave dizia que escrevia como um espectador atirando para um palco imaginário personagem antagônicos e esperava que interagissem. Dificilmente o antagonismo vem empapado de amor. Existem versões do The Wasp (Texas Radio)  em que se entendem melhor as palavras do shaman. Penso nas cidades irmãs: Niterói, Almada e as cidades dos pântanos da América negra é um amalgamado de soul, repressão, negritude e lama que nunca seca. Funk, Alligators canoando pelos canais da seca do bacalhau nas imediações da praia da luz onde escovam o casco dos navios, porta de entrada de drogas leves e berço de raivas por chegar sempre em segundo lugar e por ter méritos concedidos por complacência das cidades maiores das vizinhanças. Subo o morro em paralelepípedos de basalto talvez trazidos dos açores ou serão de gnaisse? 

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...