16.12.09

Insônia

Separo a carne e como só as cartilagens numa farta malga de alumínio em que se reflecte a solitária vela que conjura nesta não-cozinha todos os espíritos que procuram algum conforto entre as sombras. Mas nunca o encontram - foi vendido. O nível do vinho – a escuridão engarrafada – sussurra o esvaziar das horas. Quando não existe posição para dormir o melhor é ficar acordado...

Zé Chove

Sevilha

Oh leaving again! This city is so succulent! And again we leave the best for the everlasting moment! And I let the tears in my eyes melt with lights outside the bus melted in the night! I felt so sick to ear the Lusitanian language: Boa noite! The experience is over for three days I was the emperor of Sevilha. Te hablo en inglé me siento internazionalle almost roman com tudo o que isso implica.
Senti o conforto do tijolo de burro, enquanto os olhos explodiam de lágrimas fulminados pelo espraiar dosol no lagedo granítico. “I’ve measured this street. Exactly two steps between facades.” E rodeado de africanos e nipónicos e sumérios e nabatenos e ciganos sigo pelo túnel negro que me despejará em Sete Rios. As vermelhas horas cintilam digitais em múltiplos reflexos. Na boca fervilham ainda as papas alioli. O alho é supremo na sua humildade. Festas-fiestas-Sevilha-Sevilha-pagãs e religiosas- one step religious and another pagan, mas verdadeiramente molhado de lágrimas. Poetastro grita-me ela aos ouvidos. O rosto guarnecido com sobrecamadas de base. Base sobre base. E umas pontas de olhos atrevidos redesenhados com vigor sobre um olhar naturalmente tradicional. What the fuck is this? 3 red hearts shinning over a tower in the middle of nowhere? Naturalmente se não tens uma forte imagem diante dos olhos a que se te apegue o coração acabarás por divagar num marasmo de fantasmagorias inconsequente.
Vais caminhando pelo denso entramado do pueblo docemente fulminado em cada praça. Com a cadência dum pachá deixas que todos te ultrapassem nas suas fonas, tão lento que te tornas o reboco das casas. Y mi hermana surripia primaveril essência da banca da l’occitane. O melhor de Sevilha é a primavera, as gordas laranjas boiando garridas, pesadas, nas límpidas e rumorejantes fontes salpicando o ar da sua fragrância rainha ornada de magnólias e príncipes perfeitos matizandonoite e dia num só corpo feminil com solavancos de anca e palmadas na coxa, rodopia a primavera sevilhana do vestido vermelho.
Tapas cerveza, tapas cerveza. Pátios e terraços de branco ferino da giralda a cidade é ferozmente árabe, árabe a perder de vista. Presuntos ao alto, o giz no balcão do rinconcillo!
Por momentos fui o príncipe do islão entre as abóbodas argilosas que encerram a penumbra duma piscina de águas um tanto mornas e um ligeiramente sagradas.
“But she’ll cry if I lie”, ”Oh but your wish is my command”
Oh and once I was the gemstone of the catholic monarchy transpirando devoção recolhido sobre o altar de la capilla real.
Albero calcado sobre o teu peito desnudo de orgulhosas e fúteis palmeiras, sinais da tua riqueza cigana-pura. Tão, tão dramática...
Mi Alma! Cariño Mio!

Tomás Manso

Lua Nova

Esta noite a lua redonda cosida à manta do firmamento faz fugir as nuvens apressadas, temerosas do seu império. A rainha dos astros desvenda-se nua e deixa que a contemplemos, entrega-se-nos e nós na nossa mesquinhez não vemos um corpo mas um furo, um grande óculo na tenda da noite. Um grande óculo que nos promete que uma vez levantado o véu uma brilhante e luminosa realidade nascerá para nós, e por isso choramos ao vê-la porque as nossas paixões esvoaçam de noite e é à noite que nos alimentamos. Temos medo do sorriso opressor do sol que ruge de fastio. A lua é nossa mãe.

Tomás Manso

4.12.09

Traças e Osgas

Oh como compreendo as traças... A fria, gélida luz branca dum lampião ao lado dum casebre branco intermitente à beira da auto-estrada atrai-nos como uma lareira numa tarde de Outono. Expresso Lisboa Sevilha. Meios-tons, tudo se reveste de meios-tons, Aljustrel embebida na nebelina acolhe-nos numa paragem de 20 minutos. Daqui podia partir, fugir das obrigações. Em vez de Sevilha por aqui fico. Meia-hora e lá vou eu rumo a Madrid. Sem poiso, sem ninguém, como a traça. Nova paragem, uma vila perdida no centro da Ibéria e novo golpe, agora rumo a Marselha e assim até ao Cáucaso.
Paragens de vinte minutos podem mudar a vida dum homem. Paragens em estações de serviço desertas, as portas da camionete abertas à geada, abertas como um convite aos estranhos. A caminho, o ronronar dos pneus no alcatrão, crioulo no banco de trás, o americano esquálido à direita na coxia e se alguém ronca com mais paixão: tosses nervosas e pigarreios anónimos. Meios-tons. Iluminação pública rasgando o nevoeiro e as silhouetas das solitárias oliveiras. Mas falava das traças. Confiamos uns nos outros, conforta-nos uma espécie de alívio quente ao sermos recebidos pelas geladas luzes de qualquer erma povoação. Em cada corpo humano pelo menos 36 graus centígrados emanados, assim à cabeça, como uma dádiva involuntária... caminhamos convictos auto-estrada fora, como a traça se acerca da esfera, do globo luminoso, felizes. Dançamos. Nessas casas brancas esculpidas pelo vento à beira da estrada esperam pela nossa leveza de espírito, esperam, as osgas para nos matar.

Zé Chove

19.11.09

Bernanos


Tardes

Magoa pensar no tempo passado, tanto desperdício de horas. Não precisávamos de falar e não falámos, mas o olhar, sim o conforto vem do olhar mais que da palavra e se não nos apercebemos dum brilho ainda que fugaz é porque morreu.

Sentados no sofá lado a lado assistiamos ao cair do tempo nas partículas de pó que dançam nos feixes de luz. Apredendemos todas as estrias do veludo do sofá, no fundo a única rectidão confortável. Explico, não existem vidas canalizadas, fluímos a céu aberto como as águas pela montanha, a cloaca máxima comunitária fede.

Eternamente contemplamos um corpo, durante a eternidade que em dadas alturas nos sufoca a lei da carne. Orgulhosamente cravamos os troféus no nosso peito desnudado, consagramo-nos com a efusão de sangue na solidão das altas montanhas do Orgulho. Humildemente permitimos que se dessedentem nos rios do nosso sangue sacrificial.

Ao final da tarde arrastamo-nos até à cozinha que o ventre reclama, o fiel revoltado. Que simplicidade admirável não tem o estômago dirão alguns, para outros é uma criança caprichosa.

A materialidade da casa acaba por ser o emboço do nosso caráter: aqueles azulejos, aquele tapete, determinada pedra, a largura das janelas... A cozinha é um Fogo, o fogo do lugar, não um Fogo como o da Sala. O Fogo é o crisol da tradição.

Uma chaleira enegrecida, umas mãos que remexem os tições directamente, um sopro que aviva as chamas.

A ressonância do sino ao longe. Irrompem as Vésperas.

Instintos

Deixámos todos os portos do mundo vazios e não nos lembramos em qual despejámos o sentimento. Os cães escanzelados que se coçam demasiado nas docas ainda poisam um olhar vazio enquanto partimos mas nem um latir do coração. O instinto é precoce: os cães amadurecem sobre uma cadela poucos dias depois do primeiro osso. O que se faz ao mar é precoce por natureza.

O Sangue

O sangue vertido sobre a terra cultivada nunca tem o mesmo impacto do que aquele vertido sobre a neve ou sobre o mármore dum palácio. É sofregamente absorvido e as árvores esquecem.

Diário de Bordo I

Até então só viajara no mar em traineiras pesqueiras. Partia de Setúbal em direcção ao sul. Rondávamos sempre os 20, 25. Largávamos o porto por volta das 4 e 30. Preparávamos a bomboca ao largo de Tróia. O mar e o céu não se distinguem do negrume. O frenesim inicial do reencontro com o mar e parceiros, o reboliço das tralhas, lancheiras, canas, agasalhos, estojos de iscos e puxadas vai esmorecendo à medida que as luzes sadinas mergulham na escuridão. Alguns descem ao porão de duas liteiras para ferrar o galho.
O mestre tem um sotaque rasgadamente setubalense. As manápulas destacam-se da sua alta fisionamia.
Puxadas triplas, carretos de recuperação rápida, alumínio e fibra, ameijoa, camarão, ganso, as geleiras escancaradas, “o camaroeiro”, lugares marcados, mini prateleiras atulhadas de isco...

Tomás Manso

Fim da Exibição

De peito cheio percorro a alameda. O queixo ligeiramente levantado, os ombros gingãos e a leveza de espírito. Tão cheio e tão leve... escorrego na relva húmida. Um segundo; a mão que sai em defesa aparasse num cagalhão com aparência de salsicha e consistência de diospiro. O adónis perde a parra. Fechem as portas do museu.

Filipe Elites

16.11.09

Lisboa Romântica VII
















Doliver D

Profecias

Na segunda sessão profetizou o início da idade do ócio. Como estado livre e alegremente procurado. Com o advento do Progresso Automatizado o homem deixará de pensar no futuro absolutamente confiado de que o melhor possível lhe será dado pela Máquina. A Máquina não é racional, a Máquina não é passional. A Máquina é Estatítica. No número depositámos a nossa confiança com carácter de Fé. Seremos embalados porque não haverá Injustiça...

Filipe Elites

Vilas e Ovelhas VIII

Não sinto a fibra da vossa cepa. Sois moles. Adiais qualquer projecto possível em nome da liberdade. Transformasteis o conceito de liberdade em pura negação. Sois uns verdadeiros bandalhos. Não desvieis o olhar – ainda tenho força para vos aviar dois tabefes nessas caras imberbes.

Ia caindo no caminho. Decidi atalhar e escorreguei em direcção ao poço velho. Ah! Ah! Esfolei-me aqui na barriga, de lado. Ao atravessar o rio ouvi vozes perto da mini-hídrica mas não vi ninguém. Nunca mais arrancam as obras lá em cima na serra.

Depois dum osso partido vai-se ao endireita e só depois ao hostital. Da última vez cheguei lá de cotovelo inchado. Espetou uma agulhas na batata. Uma aguadilha morna fluiu das perfuradelas. Fico sempre maravilhado com as suas rezas enquanto enfaixa os doentes.

Havia um sentido épico dado a toda a vida que se perdeu no dia em que passamos a considerar a importância do minuto. A urgência é anis escarchado numa garrafeira fechada numa sala duma matrona quarentona, enjoa de tão doce.

Passámos à sala de jantar. Ajudei a transportar a travessa do arroz de pato. Vimo-nos entre a tropa que vicia o ar da casa. Atravessamos o ar leves com o pensamento preso um no outro.

Sim casei por dinheiro. Ninguém toma uma decisão destas dum momento pró outro. É um crescendo e os sentimentos de culpa vão sendo mitigados pelo embotamento de acções anteriores.

Fui viajar por ocasião da venda dum apartamento duma que recebi em herança duma tia afastada.
O apartamento fica numa antiga vila oprária na cidade de L... Ao fundo do corredor que estrutura a vila fica uma antiga fábrica

Vilas e Ovelhas Ranhosas VII

Húmus e morte. Evolado entre os troncos húmidos da floresta prossegue a história. Depois de horas sem vermos o sol de olhos postos no lodo, na companhia silenciosa dos espíritos chegamos. Uma casa perdida entre as árvores. Os ramos das árvores mais altas invadem as janelas e as silvas arrombam as portas.

Duas meninas sentadas placidamente no chão da sala olham sem expressão o padre. No compartimento contíguo vislumbra-se através de um postigo o dorso acinzentado dum cavalo.

‘Tarde
Boa Tarde
Sente-se
Quando é que o seu marido morreu?

As laranjas já foram a nossa riqueza.

Se um homem desisti ninguém lhe vem pedir contas. O que nos atormenta é ver os outros arriscarem os passos fora do caminho.
Assava umas batatas no fogo espetadas num arrame grosso. Fazia massa de pão. A massa colada torna os dedos mais grossos. Uma bola esparramada sobre o calhau de granito aquecido todo o dia junto ao fogo. Azeite e louro.

Quem me pode levantar agora? Se a fonte greta poderá o rio que corre a jusante com todo o seu caudal voltar a trás e reanimá-la? Mas vai desesperar não passou já a sua hora? Será indigna a retirada sem nada mais que dar. O esbanjamento não será por ventura a maior glória? Mas gloriamo-nos das nossas represas fétidas de águas paradas. Oiços passos absurdos na estafada mãe d’água e choro com semelhante entrega.

Corda-Bamba


Vilas e Ovelhas Ranhosas VI

Facilmente me encontro perto do choro. Reprimo as lágrimas perante as maiores alegrias e tristezas dos outros, não suporto que me descubram lágrimas nos olhos, só ia piorar. A minha vida não me provoca qualquer emoção.

Andámos perdidos horas e horas entre as árvores e montanhas. Junto aos rios a vegetação é mais feroz e os espinhos reclamam pela carne. Os leitos de rios mortos escondem serpentes entre o lodo. Se largamos o rio as escarpas tornam-se abruptas. Aguçadadas como lâminas.

Tou tão doente. Acho que vou morrer. Senti-me virado ao contrário com os repelões dos vómitos no caminho para casa. Os olhos brilhantes da febre, a palidez da pele, as costas recurvadas do peso da cabeça devem ter provocado a compaixão das velhas com quem me cruzei no metro.
Maldito caril estragado. Atacas como um vírus aspirando-me as forças.

Não que nunca tivesse pensado na morte. Quem é que nunca pensou?

Olhou-me como se já nos conhecêssemos com uma insistência desusada entre os que andamos a pé pelas calçadas da cidade. Algo nos une. As mesmas fraquezas dão semelhantes tremuras nas pálpebras dos olhos ou tiques nas mãos idênticos, por vezes a mesma cadência cautelosa no respirar.

Partilhamos as mesmas revoltas interiores desde sempre e o nosso coração sempre se encavalitou do mesmo lado da amurada.

Vilas e Ovelhas Ranhosas V

As sopas grossas eram o verdadeiro brasão da casa.

Nem é meu hábito mas gritei-lhe “não, não é o tédio. O nosso verdadeiro problema é a preguiça. Uma preguiça básica. Não uma preguiça astuta. Uma preguiça dengosa que molda as pessoas como dois corpos metálicos incandescentes. A busca gulosa da satisfação a dois iliba-nos a consciência. Imagina todo um povo...” Sentia o corpo tremer de indignação e vergonha pela exaltação. Nunca fui de extremar opiniões. Sempre alimentei uma certa tepidez nas relações. Tentei olhar humildemente para o chão em busca do perdão pela ousadia.

Vilas e Ovelhas Ranhosas IV

Escrito no livro de contas da taberna... lido com o dinheiro. Chamaram-me o filho do Pragmatismo. Fui alcançando uma proeminência diria quase física sobre os que me rodeiam. A começar pelos meus filhos.
Pestanejo sempre que tenho de calcular trocos. Devo ficar com um ar deveras aparvalhado. O meu sucesso é a minha mulher. Se não fosse o seu jeito na cozinha à muito teria fechado as portas. “O segredo está em não mudar o óleo”.

Recolha de escritos avulsos feita por um louco da nossa vila encontrados pelos filhos do padeiro Elias enquanto brincavam numa antiga cisterna seca. Chamava-se Carlitos. Costumava assistir à missa. Benzia enquanto-se ajoelhava com um gesto amplo e quase dançado. Sorria satisfeito quando as beatas velhas lhe afagavam o cachaço como a um potro. Dir-se-ia meigo mas rosnava se não ouvia as respostas ao ofício do seu vizinho do lado. As calças de bombazine gastas davam-lhe um aspecto de trapo.

Vilas e Ovelhas Ranhosas III

Um incêndio. Um lugar morto. Um dente podre entre o casario desarrumado encosta abaixo. E decerto um espírito ensandecido que agora vagueia em busca de morada. E nem o calor das vigas enegrecidas... Mas decerto depois de envolvido nas vinhas selvagens e abrunhos-juvenis... reconstrói-se o lugar. Uma churrascada e abençoa-se de novo o lugar semeado de vinho novo.

Acidez. Aqui os frutos não chegam a amadurecer. Vergam os ramos com o peso rijo da juventude. A geada corrói a pele. Queima. O solo traga a fruta esquecida pelo vento. Acidificam-se as entranhas dos rebentos raivosos por uma dentada amorosa que não chegou a ser desferida. Tanto sumo que ficou por verter.

O sangue escorre pelo degrau. A faca. A cozinha escancarada revela a fornalha onde se refastelam os gatos. A chaminé larga esconde a fuligem até ao céu. A sujidade escondida imprime carácter às coisas. É assim...

A bosta das vacas que se acumula nos estábulo se não é removida enrijece como argamassa. Anos e anos de bosta acumulada reforçaram os alicerces do nosso estábulo. Os pintassilgos debicam o feno repisado.

A tia T.. guarda o feno num poço. As compridas forquilhas ameaçam os céus. Ninguém guarda o feno em poços. Ao final da tarde quem se aproximá-se podia ouvir os guinchos das lutas de grandes ratazanas perdidas entre o feno. Ninguém gosta de ser interrompido nos seus actos íntimos, muito menos pelos seus semelhantes.

Ninguém discute a proveniência das águas do rio. A água é preguiçosa e vai moldando os leitos em curvas quase humanas. As “represas” abandonadas são como segredos escondidos na frondosidade da galeria fluvial. Um corpo insepulto, um nado morto, uma relíquia partida, um braço amputado: os nossos segredos apodrecem entre o húmus esquecido na sombra.

Vilas e Ovelhas Ranhosas II

Este pelorinho enfezado no centro da praça, sobre um pódio de escadas mal calibradas aos passos duma pessoa, pesa demais sobre as nossas costas.

Criamos burros. São lanudos e atacam tudo o que tenha um cheiro agradável. Não se lhes pode oferecer um troço de chocolate que nos tentam mastigar o braço de seguida. São largados nos terranos de pousio e estraçalham até as canas que vicejam junto aos rios.

Uma sombra fria infiltra-se pelo musgo que cobre as pedras dos rios. Pequenas serpentes e sapos. A peçonha. À noite choram e piam omo almas tristes enquanto se fabricam as neblinas matutinas.
As águas são gélidas como as mãos das crianças. A água é uma dádiva sagrada e a noite a sua mãe.

Diz- se que ainda vive uma velha madre no arruinado convento. As galinhas bem as vemos para lá andam. As águas da fonte carcomeram as caras das gárgulas e pintaram-les barbas de limos.

Qualquer homem desta vila tem barbas. O tio t.. ainda trabalhou na construção da escola.
Camisola grossa. Mãos grossas como o tronco das árvores. Mais que a idade conta o trabalho feito e o melhor indicativo sãos as unhas. Grossas como carapaças.

Carapaças e capas. Castros. De que falar se não há guerras? Só nos restam as muralhas e a decadência. A figueira que irrompeu no antigo torreão luta com o vento impetuoso. E a guerra é uma dança sem fim. As raízes mordem a terra. Os frutos acidificam os solos.

A fruta louçã sobre a mesa atoalhada espelha a exígua sala. O odor duma casa marca a verdadeira identidade dos seus moradores. Lenha, bafio, refogado, azeite, fogo. As paredes nuas ora cegam de luz ora morrem na sombra. É um santuário. Ouvem-se os gemidos do soalho. Um homem de joelhos pode idolatrar o seu lugar.

Vilas e Ovelhas Ranhosas I

Esta história passa-se numa vila que nunca conseguiu chegar a ser cidade e cresceu tanto que a deixaram de chamar aldeia.

Os dias soam nascer iguais. Avaliando pelas manhãs diria que é sempre primavera. Um nevoeiro denso cobre tudo. Os rios correm perto quase sempre fracos mas com um rumor constante.
Cheira a molhado e a vetação fresca. A humidade é má para os ossos dos velhos e as ovelhas ficam ranhosas...

O padre passeava na mata. Era estranho vê-lo de batina entre os arbustos revoltos que se agarravem às árvores. Com uma pequena tesoura de poda libertava os jovens carvalhos da prisão das silvas.
Missão redentora sem dúvida. Era magro e tinha um sorriso satisfeito.
As árvores mais velhas curvam-se.

Curvado no confessionário desenleia os fiéis do sufoco dos espinhos da alma. São sempre os mesmos pecados. A luz não chega ao tecto da velha igreja. Granito e xisto. Bastante asseada pobremente asseada.

Os caminhos secos e encurvados estratificam as montanhas em torno. Os muros de xisto serpenteiam, por vezes caem e falam sempre de um trabalho árduo feito um dia no princípio de algo.
Os inícios são sempre fulgurantes. Não haveria obra se assim não fosse. Estes símbolos dos começos enchem de melancolia as paisagens. É ainda mais duro mudar o que já foi erguido e a cristalização das formas verga-nos a vontade.

29.10.09

In & Out

Não pedimos para crescer o que crescemos
Não conjurámos estes tiques de banqueiro arruinado
Não assumimos o passo dado
Não cedemos à graça não cedemos

Sumo de laranja bronzeado
Raparigas de sabor a piña colada
Pétalas soltas no relvado
Ondas de cloro inebriado

Nunca nos centramos em nada
Custa sangue a decisão
Cortamos assim o cordame
E vogamos nos cabos da ilusão

Cocktails purpúreos fumegantes
Vernis batons halogéneos
Passos felinos passos ingénuos
Entrega sem cedência do sagrado

Agora que nos libertámos da Antiga inibição
Vergámos as cervis ao instinto
E agrilhoámo-nos a uma escravidão
Auto-imposta que se sacia no suicídio

Dás duas voltas sobre ti mesmo antes de te sentares
Na sombra do porão onde a água do mar não seca
Aligeiras o pulso e sentes o peixe picar
Amanhas o monstro ainda abocado ao anzol
Deixas que te sangre a úlcera

Floresvermelhas brancosvestidos
Frangosnagrelha noscoposvinho
Olhosnaterra aolongeomar
Seaalmaencerra ocorpodá

Troçamos dos clássicos junto ao balcão
De externo moldado ao alumínio

Lúcio Ferro

27.10.09

Cocktail




Lamentações

é árdua de trato e veste-se de desolação
é laminar como a verdade pura
a sua presença exige eterna renovação
o seu silêncio é a minha secura

Tomás Manso

Violação

Branco-halogénio
restos. a laranja violentada
sobre o mármore da cozinha.
o sumo reprimido com pudor
se aflora aos citrinos lábios.
A pele é derramado leite
apodrecendo sobre a bancada fria
o corpo inerte como farinha
não leveda
esfriam-se as cores nos azulejos
sem reflexo

Filipe Elites

Estado divino

Estado divino
não chega a haver um estado...
apenas um ligeiro prurido

..........................................................

Se me descanso sobre um rochedo
as arquejantes costas batidas
por ondas que morrem cedo
náufragas a meus pés esquecidas

Nas escarpas ecoam esperançosos
risos pelo vento recolhidos
em fermosas redes de suaves cordas
onde nos abandonamos loucos, risos.

Madalena Nova

SLB

SLB Orgia de Golos

12.10.09

A noite flui cristalina e rubra no vidro de cristal
a noite desce de mansinho como o vinho dentro do copo
a paixão cresce com a suavidade de um anoitecer ou de um amanhecer
E afaga o cabrito-sol
e ainda tem tempo de tocar o dia
por vezes a paixão encabrita-se e é necessário afagá-la, amansá-la
A Lua e o Sol
Perseguem-se como dois amantes inconfessados
Brincam tocam-se cedem e concedem
Envolvem-se azeite e água e choram
Assim assim uma vez e outra sem nunca se falarem
(assim assim) referência ao namoro entre dois entes
puros como só os astros sabem sê-lo
O namoro visto como água e azeite ohohoh
Exibem troféus seus anjos
aqui podem incluir-se todas as maravilhas
provocadas pelo sol e pela lua:paisagens, sombras, reflexos, sonhos que provocam
Os amantes de certa forma também exibem os seus dotes e entregam-se mutuamente
Emprestam e experimentam sobre as mesmas árvores
noite e dia actuam sobre o mesmo mundo mas em alturas diferentes
A entrega da interioridade, a partilha dum mesmo mundo
Pode ser doloroso
Mas quem diz que se conhecem?
Como dizia o Rilke: o amor são duas solidões que se protegem uma à outra
Quem poderá entregar-se totalmente? Conscientemente
Partindo do pressuposto que o amor é entrega de si... Será que podemos conhecer totalmente a interioridade de alguém, ainda que nos seja tão próximo?

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...