21.9.10

Descida ao Vale

Passeios a meio da tarde de Verão
O choque era tão forte entre o alpendre e o vácuo
Que saltavam as lágrimas
Caminho pelo alcatrão ao longo do muro de tijolo antigo
Os  rabos de garrafas agarradas ao betão
Imagino os braços esfacelados todas as veias cortadas
O sangue secando ao sol sem alguém que me ampare
Aguardo mais à frente à sombra da pesada figueira
Que apoia os seus braços carregados de figos no muro
Vou reparando nos tijolos carcomidos em pó e nos podres ocos que abrem
Imagino a derrocada lenta como as ondas de calor
E entretanto intrigo-me com os papéis de rebuçados
À beira duma Ford Transit branca e numas cuecas
De miúdas rendas ressequidas pela abrasão violenta
Do Verão.

Atravesso uma estrada a escaldar
Meto-me pelo baldio de terra seca e palha seca
Sinto a garganta seca e as narinas têm dificuldade
Em ventilar o cérebro. Sinto o pó colar-se ao suor
Dos tornozelos sem meias. As cigarras serram o horizonte
Numa berraria infernal o sol pesa nas sobrancelhas e nos ombros
Apalpo os ossos dos braços, parece que fui chupadinho pelo demónio
Começo a descer uma encosta plantada cientificamente de pinheiros
À esquerda e à direita abrem-se alas
De pinheiros em que a terra é mais fofa e alta
Trepo para um desses desvios, o calor é ainda mais intenso
Apesar de não passar aqui ninguém escondo-me para mijar
Oiço os borbotões do meu mijo na terra poeirenta
E oiço uma cobra arrastar-se no limite da galeria

Continuo a descida
Cansa andar sempre a travar o peso que se nos quer cair
O caminho pedregoso resvala a cada passo
A vegetação adensa-se agora mais perto do rio
Existem aqui placas para um acampamento de holandeses
Sempre imaginei o local como um refúgio de depravação

Vejo me sempre tão belo
Como um vulto em que ninguém repara mas que devia
Deviam reparar mais em mim, nos meus gestos, nas minhas palavras
Consolo-me por ao menos alguém notar nos meus passos: eu próprio
 As silvas agarram-me o corpo como fãs sedentas de sangue

Zé Chove

PAUSA

Paraíso National

A ignomínia gatinhou em volta do teu berço
E insinuou-se nos teus lençóis
Azedou-te o frente e fez-se tua filha na adolescência
E hoje a
Rua Augusta teu vale dos mortos
Onde desces de fones nos ouvidos
Buscas
Perspicaz os regos das mães que ajeitam os bébés nas cadeirinhas
Infiltras-te nos arraiais das paróquias do Castelo e
Roubas a internet dos vizinhos
Lá vai
Lisboa desgravatada
E a margem sul de saia arregaçada
E as ondas do Tejo em cavalgada
Como os desejos da bandeira desfraldada

Nicolau Divan

Escultural

Folhear o ouro do conhecimento     verdade
Pelas volutas da memória     das ancas
Dourar o passado dar volume      a glória
Ao presente e tactear o amanhã      o mantra
Com o olhar difuso do artista     do artolas
Que esculpa a sua vontade     maldade

Diamantes

Falava com pausa e sensualidade como se tivesse a boca cheia de rebuçados, “diamante” ácidos que se vendiam nas casas cafeeiras. Costumava entrar numa dessas casas na Av. De Roma. Sentia-se aconchegado pelo aroma do café. As altas portas de vidros cristalinos e molduras de madeira escuras separavam-nos dum mundo de prazeres coloridos e aromáticos, eram como as portas dum santuário e cada prateleira como uma minúscula capela absidial repleta dos seus santos e mártires. O tecto era alto. O palavreado ronronante e insinuante do Sr. António funcionava como um lenitivo, uma compressa balsâmica sobre os sentidos.

Corpus

As ruas alçam as fachadas escondendo a sua frescura do bravo sol andaluz
Os pavimentos imundos qual rio de pecados de cera vermelha, funcho e cipreste
O Corpus passa cadenciando a devoção cegando-nos com os reflexos da sua coroa solar
O argênteo ouro ateando o fogo às ruas de Sevilha

Avon

Sempre sonhei ser revendedor da Avon. Acordar tarde, demorar na toilette e sair para o Verão envolto numa aura de aloé vera a impingir cremes e perfumes com extrema delicadeza e o melhor de tudo seria aplicar loções na parte visível das costas das meninas.

Conselho

Se andares de autocarro, não andes com a lapiseira no bolso das calças pois se tiveres de te agachar para apanhar o passe do chão ela pode cravar-se na barriga e perfurar-te o estômago.

Sermão aos Peixes

Em todos os seus gestos adivinho recados divinos. Sussurros. A tendência do seu corpo é resistir. Toco-lhe com respeito ainda agarrada ao anzol abocanhando o ar que lhe falta. Todos têm uma leitura diferente das mesmas realidades. Apesar da naturalidade com que procedemos existe sempre um conjunto de verdades de que não abdicamos. Perante o estertor final uns riem, outros choram, uns emudecem e outros dão urros de júbilo. É preciso força e um certo jeito de pulsos para puxá-las para dentro do barco. Falo não só dos peixes como dessas iluminações que nos queimam a pele do pescoço e nos fazem reflectir: usa um chapéu se não queres sofrer ou não o uses e entrega-te docilmente ao delírio de fogo do Verão. Quando parecia que finalmente recuperava a razão…

Orlando Tango

Ladytron - Cracked LCD

Electro Poportuguês

Para uma renovação do electro pop em Portugal
Integrando valências do Grime, Dub acente nos valoress clássicos do Dance-hall e derivantes do Disco sobretudo a versão Italo.
Cantão alemão / Italiano

Uh nhaf nhaf zu
Uh nhaf nhaf zu
Irg lhaf lhaf ver
Irg lhaf lhaf smer
I never break mirrors

Som som som intenso tom
Rum rum rum fill the room
Tum tum tum bato coraçum
Como com cum a tensum

ANAGRAMA
ANAGRAMAS
ANAGRAMASME
ANAGRAMASMEL
ANAGRAMASMELANCIA
ANAGRAMASMELANDCIANETO

Filipe Elites

Ale e Ele e Ela

Ele bate ela sai
Ele corre ela cai
Ele toca ela vai
Ele coça ela ai...

Ele chora ela ri
Ele troça ela a ti
Ele droga ela sim
Ele moca ela ri

Ele choca ela em si
Ele choça ela aqui
Ele goza ela ali
Ele louva ela alá
Ele implora ela dá

Filipe Elites

Elektro choque

Bizarre pizarro
Sonhos matam
Batatas matam
Ruas matam
Famílias matam
O dinheiro mata
Drogas matam
Alcool mata
A pátria mata
Escola mata
Tou ma cagar
Vai-ta matar
Ciganos matam
Preguiças matam
Sujar matas mata
Comer demais mata
Tudo demais mata
Sonhar mata
Tou ma cagar
Vai-te matar
Não te me esqueças.
Today i didn’t take the bus
Indecisions and perplexion
Froze my steps people
Door and I just do nothing

Filipe Elites

Just Fucking Tell Me What To Do

Electro shock

Nemátodos
Richtig Oder Falsch

Bla bla bla da cla mitá
Faq faq rag ma grasca la bita
Ssa ssa sol ep tadrá clash crack mitash

Fra fra bra ma la drap
Papcrag da mast xa la fae ah fae ah
Umblap catrá bap ba la bap bap bap

Ras ras ras ars ras ras
Ras ras ras rsas ras rasgás palavras
Gásgás gás gás gásgás gastas palavras
Pá áp pá pápápá pá pá para com isso pá pá
Just fucking tell me what to do.

Som som som intenso tom
Rum rum rum fill the room
Tum tum tum bato coraçum
Como com cum a tensum

Horen Antworten
Arbeit Lehrerer schue ich heisse
Abendessen früshtucke
Stunde es regnet tut
Mir leide lielings sind
Zeitgeist

Einkaufen mit dem rad
Ge+mach+t
Perfekt
Sehr Gut

Fernsehen
Matharbeit
Eine stunde – durante uma hora
Ich heiβ Francisco. Ich bin 28 jahre alt.
Ich habe eine Hund.
Meine eltern heiβen Francisco und Paula

Losango amoroso
Um estúdio em malta                   uma palhoça em Capri
9400 Merdapíxeis

Passadiço não pissadaço
Passadiço não pissadaço
Passadiço não pissadaço
Passadiço não pissadaço

Buncker em neuchatel

I’ll keep dancing on my own
I’m not the guy your taking home
I lost my faith in science
So I put my faith in me
Make it out on the train
Got this little girl singing
On repeat in my head

Filipe Elites


26.7.10

Zhang Ziyi - The Road Home

O'Malley and Duchess

Se ela não se sente excitada, excito-a eu. Começo com uns jogos de palavras parvos, deixo que ela me vença. Sei bem como é gulosa e rapidamente se entretem deixando-me assistir às suas cabriolices. Gravo todos os seus gestos.

Por vezes presenteio-a com brinquedos novos, um estilete rombo, umas tintas antigas, tecidos novos para cobrir a sua nudez.
Quem nos visse diria que somos porcos vomitando na boca um do outro, partilhando a nossa intimidade na praça pública. Ela sabe da minha fome e da brutalidade dos meus apetites.
Agarro-lhe os braços atrás das costas e violento a sua letargia.
Perante suas infidelidades coro de vergonha mas só perante os estranhos quando nos encontramos na intimidade volto a acariciá-la como um patrão atencioso e dou-lhe de jantar.
Existe tal cumplicidade entre nós que nos rimos das mesmas coisas, choramos com as mesmas lamechices e até nos gabamos de nunca fazermos lista das compras.
Os nossos filhos renascem eternamente jovens basta memorá-los. Se algum dos nossos filhos nos envergonha será mais protegido num castelo teimoso e inexpugnável.
Ajoelho-me perante o seu vulto se ameaça abandonar-me e nunca lhe exijo pressa.
Osculo o seu ventre e louvo a confiança do seu pai nas mãos deste servo em que depositou a sua filha.

Filipe Elites

Perdas

Neurónios ou cariátides suportes da memória

Queridas estátuas gastas do vento (o passar
Do tempo) na acrópole ao cimo do pescoço.
Ao longe o murmúrio dum soluço
Um dó absoluto que faz vibrar
Os tímpanos do oratório
Um colírio que faz chorar
E reflete na tensão que o sentimento um dia lavrou
Rachas no pensamento e o templo pétreo
Do céu deixa de ser abrigo
E os astros que brincavam matematicamente
Com os ângulos dos vossos braços empalidecem
Sobre um montão de areia que vento espalha
Desenfreado.

Zé Chove

Há Correspondência Com

Há correspondência com a linha Amarela e com a Linha de Si...

Tua linha amarela...
Tua linha ama...há correspondência na tua linha
Tua linha é minha correspondência...
Há desistência na tua...
Correspondência na minha independência
Há linha na tua respondência...
Há resistência na tua correspondência
A minha linha é a amar. Ela
A desistência tem correspondência com a tua linha

André Istmo

Crescendo

Vales
Israel Vale dos Reis

Juro que não era o que queria um
Solestício ao Inverno

Beija-me numa sombra de dúvida um
Sonho sem destino

Há mil anos não era de acontecer
-Adormece o tempo

Do cérebro amolecer
Vegetalização do medo
Vicejante no teu pelo
Em mim magnetiza-se
O espectro da melancolia
Na placa de gelo
O nosso reflexo
A refracção do pânico

Orlando Tango

Refeições

Tua boca a pérola e a ostra
A caverna nacarada a louça
Em que me sirvo e sorvo
Com deleite o leite do amor

E desço desfaço-me em teu pescoço
Deslaço os gestos sem controlo
E fecho os meus olhos adivinhando o calor
Do teu sopro gracioso alvor

Não me dês do veneno não me dês
Esconde o sereno arrebol do teu rosto
O escol de minha vaidade o estremeço
Não me dês o mel condescendente dos teus olhos

Manel Bisnaga

13.7.10

Tina Turner

Mareado V

Lebanon blonde - Criatura angelical a vagueando entre rastafaris na praça do Adamastor com o mar e o rio todos metidos num só olho.

Esmerava-se por embrenhar os inícios das peças num limbo pseudo-intelectual, era a sua forma de vencer o mundo e de tirar um sabor mais doce do seu trabalho. Posso não ser actor mas hão-de reparar em mim e eu dominá-los-ei com um olhar condescente - consolava-se no duche todas as manhãs frias da sua vida. Passeava junto à praia todas as madrugadas e desabafava no mar.

Não há nada para contar?
É só isto que me interessa. É só isto que se me oferece. Um plano contínuo e largo profundamente cinemático às escuras pelo mundo em que flashes duma luz todo-poderosa vão gravando como diapositivos ambientes ou cenários na minha sensível memória. A história nunca foi contínua porque a nossa percepção é espasmódica.
O antigo cilo da Cova da Piedade ao lado da ETAR que fica nas traseiras da Lisnave confinando com o Alfeite está empestado de vampiros romenos. Esgueiram-se lá para dentro por um portão metálico dobrado no canto rente ao chão. Sanfonam a noite toda e ao final da tarde roubam todo o metal que possam encontrar: caixas de anzóis enferrujados, baloiços dos parques infantis, jantes de pick-ups, maquinaria dos estaleiros, cobre dos cabos eléctricos, sinais de trânsito... O saque é armazenado na Quinta da Arealva no Ginjal numa cova entre blocos areníticos caídos da falésia fóssil.

"No Sanatório do Outão durante o século XIX foi um reformatório de meninas. O único feriado que tinham era no solestício de Inverno. Nessa noite costumavam bailar com os militares do forte de São Sebastião situado uns passos abaixo. A fortaleza de São Sebastião fica em frente da Torre de Belém e as duas fortalezas guardavam a entrada do Tejo".
“As Paixões tornam-te diferente”, lia-se, era a dedicatória do livro. As folhas ainda estavam coladas sinal do interesse que os habitantes da casa tinham pelo livro.

Oh Leirosa de praias esquecidas e orgulhosas fábricas de papel escreveste a tua história na areia sobre a memória dos eucaliptais líquidos.
Quando o nosso carro por ti passava com os seus faróis prescrutadores só divisávamos a primeira fileira de eucaliptos que se recortava dum cenário de escuridão como uma fronteira para uma realidade alternativa.

Tomás Manso

Mareado IV

Graças à exaustão física, esses "quase esqueletos" ficavam incapacitados para quaisquer ações violentas e, assim, "dóceis" às rígidas imposições da instituição.
Além disso, a exaustão imposta funcionava como um tratamento de choque emocional antidelírio: os pacientes enfrentavam, além do sofrimento físico e da sensação de impotência, a impressão angustiante da morte iminente. Uma impressão que poderia despertar neles algum instinto de defesa, capaz de ligá-los, de novo, à vida real. É uma explicação que se aplicaria também a outros tratamentos somáticos ditos "de Afogamento".

“A fé sustem-se também na nossa experiência de realidades adjacentes, inerentes ao acreditado. A fé cimenta-se num revelador de confiança. Sim acreditamos em mistérios.
Perturba mas consola. Perturba e consola.
Já não estamos dependentes das vicissitudes históricas só dependemos da sua Cruz”. Proclamava o prior cigano da aldeia piscatória da Cova do Vapor.

Lopes no seu quarto proibido de falar com a tia louca. Olhou através da vidraça e contemplou-a absorta no prédio em frente dois pisos acima. Quando o viu esboçou um sorriso amável e cúmplice. Em vão tentou disfarçar que a vira, foi denunciado pelo subtil trejeito do lábio e  um arreganhar da narina como se sentisse um mau cheiro. Ela acenou. Incapaz de ser antipático para quem quer que seja. Queria que lhe recebesse uma encomenda. Um simples pacote que lhe fez chegar com uma cana de pesca enferrujada que ameaçava quebrar-se com o peso da encomenda. Suava sob o seu olhar alucinado e amistoso com medo que o surpreendessem falando com ela ou que a encomenda o contaminasse com a sua loucura. Procurava não respirar e ser rápido ao mesmo tempo. Pousou a encomenda na mesa de trabalho, sorriu enjoado em despedida, e fechou a janela. Limpou o suor das mãos nas calças e acometido de calafrios. Os olhos saltavam ao ritmo do coração entre a porta e o malfadado embrulho. Duas cascas de ouriços do mar.

Tomás Manso

Tina Turner

Mareado III

Perseguições de lanchas da polícia marítima no Tejo durante a noite. Uma espécie de Padrinho lisboeta com controlo das discotecas, perversão de menores, palacetes em Sesimbra e na Arrábida em zonas de proteção ambiental.
Observava as mouras que se banhavam nos tanques através do mata-cães. “Omar, Omar...”

4 brasileiros abriram um bar num posto de transformação abandonado, perto duma urbanização que não chegou a arrancar para além das infraestruturas. Os brazucas vendiam cachaça 51 comum punhado de areia para encher a barriga e dar um ar mais tropical à beberagem.

As potências envolvidas são sempre as mesmas:
Inteligência, vontade, paixões, força física. Só variam as proporções. Podemos ler como uma fórmula matemática o passado, mas os factores presentes são demasiado livres para que possamos adivinhar o futuro e aí é que está a graça.

"A finalidade primária é naturalmente curativa a disciplina, as ameaças e pancadas são necessárias tanto quanto o tratamento médico na verdade, nada é mais necessário e eficaz para a cura dessa gente que forçá-la a respeitar e temer a intimidação. Com este método, a mente, mantida a freio, é induzida a renunciar à sua arrogância e logo se torna mansa e organizada. É por isso que os maníacos curam-se com maior rapidez se são tratados com a tortura e a detenção em cela mais do que com os medicamentos."

No insigne Hospital de Nápoles, os loucos são mantidos com uma alimentação tão reduzida que se tornam como esqueletos. Pouco a pouco, diluídos os humores maus e trocado todo o sangue, acredito, que alguns deles fiquem com a cabeça curada.

Avô ensina-me palavras novas. Sim filho:
Persengulatro - Sensação ou sentimento de que algo não é o indicado para mim mas que é muito bom para outra pessoa.
Calcibar - Percepção de que uma acção é moralmente má mas que dá prazer concretizar
Bifitro - Sensação súbita de frio e calor ao mesmo tempo
Lovasta - Acto de amar que provoca a morte do ente querido
Ansebrance - Sensação agradável de se merecer um castigo violento; ânsia de sofrer em reparação de faltas cometidas

Um Cruzeiro que parte de Santa Apolónia e um torreão do Estado Novo que divide as águas do Tejo. Existe uma sabedoria das ruas. É feita dos conhecimentos dos ansiãos, reformados, estrangeiros de passagem, miscigenadas culturas, universitários a meio tempo, bandidos, traficantes, vagabundos, visões distópicas da sociedade, raiva, chavões milenares, canções, sagas, televisão.
É sem dúvida rico. Marinheiros e industriais recém despedidos também ajuntam suas teorias. É quase um espírito. Um espírito partilhado. Mare Nostrum.

Tomás Manso

Mareado II

Clara trabalhava no armazém do Feira Nova de Telheiras entre corredorese câmaras de refrigeração. Ngoy operava o empilhador e usava uma garra de tigre ao peito um amuleto da sua tribo. Costumavam descansar os dois sonhado em cima das paletes de Evax.
--Na nossa tribo os maníacos são contidos e reprimidos muito mais pelas pancadas, ameaças e censuras do que pelos fármacos, que nem querem tomar.
--Coitadinhos
-- O tratamento, administrado pelo mestre dos loucos, inclui dietas, banhos de mar de madrugada, vomitórios, trabalho e freqüentemente castigos, como aconselham os grandes curandeiros.

Casa na estância balnear abandonada na praia do Outão. Piscina de água verde escura onde dançava todas as noites na prancha uma rapariga selvagem abandonada pelos pais.
Na Rua do Arsenal os prédios confinam com a encosta onde foram escavadas dependências e caminhos secretos. Foi encontrado um túmulo fenício e uma adega romana, um armazém de âncoras enferrujadas...

Tomás Manso

Mareado I

Dois Demónios Fenícios costumavam assaltar as noites dos turistas que se alojavam no largo do Chafariz de Dentro. Esta reentrância na cidade era uma baía de fundação dos barcos mais pobres dos fenícios que não podiam pagar as taxas do cais das colunas.
Os turistas acordavam deitados no lodo da doca seca ladeados de corpos de fenícios decepados. Todas as noites se ouviam gritos lancinantes na emparedada Alfândega. As canções antigas de escravos com fome nos porões de caravelas.

Muitos alemães com a descrença no Führer passaram a consultar cabalístas judeus refugiados em alfama de onde haviam sido expulsos mas que um tal de Sousa Mendes voltara a realojar.

As primeiras discotecas a surgir em Portugal começaram em pavilhões industriais e cilos abandonados na zona do poço do bispo. A Lisnave andava num frenesim, eram os loucos anos do Canecão e do babyboom lusitano entre prostitutas de Famalicão perdidas na margem sul e latagões alentejanos que precisavam de descansar do trabalho nas docas.

Existem dois tipos de ciganos o oleoso e colorido que costuma vender pensos e posters religiosos e o cigano que veste de negro e é desdentado e vende roupa. O oceano sempre foi uma maldição para a raça.

A antiga cozinheira do canecão habituada à fama da melhor moamba com galinha do campo fez uma última moamba com uma gaivota e algas como legumes antes do restaurante fechar as portas. Ninguém sobreviveu a esta última refeição. Uns desconfiam que a gaivota estivesse carregada de radioactividade outro supõem que uma osga tenha caído no caldo outros afirmam simplesmente que a direcção do afamado restaurante era composta por espíritos com uma missão e que simplesmente se retiraram.

Tomás Manso

7.7.10

Foros das Passarinhas

Turbamulta

Adonai criou o mundo pela palavra e em seguida ele próprio se fez palavra. O seu avô nascera Alentejano e desde então ninguém havia abandonado a região. Eram conhecidos na zona como os Seres Sublunares. Eram pacatos e veneravam a noite. Elohim era o filho mais novo e as gémeas as do meio. Delas escrevera o notário um opúsculo bizarro que se lia nas festas da aldeia para gáudio da criançada chamado Cântico dos Cânticos. Ele fantasiava que as duas seriam suas esposas vivendo o trio com uma alegria fulgurosa. O filho do notário chamava-se Himeneu e passava o Verão dando concelhos aos jovens sobre a forma de alcançar a felicidade envolvido na sombra e nos vapores dionísicos da tasca do Senhor Pafo. Himeneu era belo e a sua mãe por ele morria de amores. Adonai estava às portas da morte e escrevia. Pensava para si que: ” Todas as histórias deviam começar com alguém às portas da morte”. Enquanto Aguardava aternamente pela consulta do oráculo do médico de família na frescura da sala de espera do centro de dia ia escrevendo e adormecendo num jogo continuo de sonho e assentar de ideias. Lamentava-se se alguma vez se esquecia dos pormenores deliciosos com que os mafarricos o embalavam.


O cunhado de Adonai, Sepher Zohar era o verdadeiro solitário de Tebaida, adquirira por 5 garrafões de vinho uma velha caserna perdida no sobral perto dum casebre alentejano estiado ao chão esquecido por um segundo na berma da auto-estrada numa nesga de terreno ataviado de bravas azinheiras esquecido num canal non-aedificandi. O barulho dos pássaros era acamado por um roar contínuo de camiões de fruta em trânsito. No Verão era o seu porto de abrigo onde podia dar largas à sua preguiça e o seu egoísmo deixava a cama por fazer. No seu retiro gritava feliz ao fim da tarde canções sem nexo:

“Suplira dzaniatha
Hadra Raba Hadra Sutha
Sanedrim Sanedrim”

E eventualmente acabava por mudar o destino do mundo com invocações lançadas aos céus incoscientemente. Reuniu-se à sua volta um grupo de discípulos que o reverenciavam como Cabalista. O sol da tarde seca as ruas de gente mas no pátio de Sepher discutem a Amizade e a Traição e aferem o calibre da verdade.

Thoth a filha de Sepher veste de negro e com o seu nariz afilado e recurvo assusta como um furacão nas folhas da floresta as crianças que regressam a casa depois das aulas. O seu espírito indomável levou-a a beijar Adonai roubando ao velho o último suspiro.

Odin-Loki, Midgard, Thor, Jormungand construiam todas as casas das redondezas. Cada um andava com a sua ferramenta pela qual era conhecido. Surpreendiam-se em uníssono com as maravilhas do mundo e agiam sempre colegialmente. Eram como os dados do poker. Eram os pilares de vários lares disseminados pelas faldas dos montes.

Jean Sony morava numa casa de cantoneiro. A casa foi construída mas a estrada acabou por não passar por lá, por isoo ficou perdida no meio da mata. Pensa-se que a sua família eclodiu por cá aquando das invasões francesas. Dispersa a família em busca de outras guerras sobrou Jean que tinha um espírito mais contemplativo. Trabalhava na Maxam, uma empresa de explosivos para exploração mineira. Por essa altura subia e descia o Mondego à procura de clientes. Marcava almoços com homens que afundavam as suas empresas nos meandros lodosos do rio.Nas suas andanças cruzava lugarejos e edifícios abandonados que lhe despertavam pensamentos poéticos:

“O vento uiva nas ruas desertas porque é um selvagem e não tem quem o guarde.
O vento uiva nas ruas desertas porque tem saudade dos rostos das gentes que lhe fizeram frente”
ou se atravessava a fachada dum antigo sanatório:

“Costumava ouvir esses urros do meu quarto no Ospital de los Incurables. O doutor prescreve-me sessões de espancamentoe jejuns rigorosos. Sou uma camisa de forças esfrangalhada...”

Divagava ensimesmado fixando tão atentamente o infinito que a realidade se desfocava e não raramente acabava com as botas ensopadas nalguma poça.

Ragnarör usava um penso no olho esquerdo, tinha um sorriso preocupado que khe fazia inchar uma veia perto do olho tapado. Dava aulas de psicologia. Nunca chegara a sair da universidade. A sorte dos protegidos. Para ele um certo conforto financeiro era natural. Preocupava-me que com aquela idade ainda andasse de chapéu australiano como se ainda tivesse folgo para aventuras exóticas. Apartir de certa idade devemos aprender a disfarçar as emoções que nos provocam as descobertas. Não cai bem num rosto maduro a sofreguidão jovial por um prazer recém descoberto. Claro que tal fogosidade há-de despertar paixões em alguém, e isso é sempre benefício, mas devemos ficar agastados perante as paixões. Os seus passos eram trágicos. Durante a sua fase Heavy Metal tatuara no peito “Saga-Götterdämmerung” e o martelo de Thor rasgando um trovão nos céus.

O Judeu errante era o personagem mais assustador da serra. Trazia o símbolo do tau impresso na fronte e o T de Tubal cravado no peito. Reverenciava Artaxerxes alçando-lhe laudes em linguas mortas ou agonizantes. Trazia um volume da Cabala no coração. Entrava e saía pelos canais de Sefirot como um bom vizinho pelo que o declaram morto várias vezes. Caía em êxtase à beira dos caminhos. Os seus antepassados eram os guardiães das páginas perdidas do Libre Vermell de Monserrat onde os Cátaros em 1399 haviam escrito a canção dos Cavaleiros do Apocalípse no dia da sua passagem pelo Egipto.

O Sr. Carlos D’Orme usava máscara para disfarçar um angioma que lhe deflagrara na infância. Usava um bastão afilado para sentir as vibrações dos ventres das suas ovelhas prenhas para não ter de lhes tocar temeroso da larva berneira. A sua tia Karin Dreijer perecera com um deses obuzes a mastigar-lhe o esfenóide.

Myriam et Mamadou como bom casal de africanos professos na mais pura tradição animista deixavam uma cesta de frutas debaixo da cama, cerejas para ser mais concreto. Gerem um café situado no istmo que liga a Serra da gardunha à aldeia de Alpedrinha por cima da auto-estrada. Tingem as redondezas de guitarras dolentes africanas e “Mon amour ma cherrie’s” com que se golpeiam a toda a hora. Deuses Lares a quem se oferecia o fogo que não podia extinguir-se pois era a chama dos antepassados o sacramento do passado que deve ser honrado tinham o seu recanto junto da casa da lenha nas traseiras do estabelecimento comercial.

Miriam sonhava com os gestos dos cães: a forma como piscam os olhos, o cuidado com que se sentam, o jeito de transportarem os filhos na boca é tão delicadamente humano que Miriam sentia o seu coração arrebatado. São gestos, mas o nosso coração é mais tocado pelo que move.

Para Mamadou as armas e utensílios devem ser belos. Devemos rodear-nos de coisas belas. Por isso o homem tribal enfeita de penas a sua lança e o homem moderno deve adocicar o seu discurso porque num mundo cada vez mais robotizado a palavra volta a ser uma arma.

Thoth sempre foi o coração e a língua de Ra. Habituada a fazer as suas vontades recebera o encargo dos celeiros. Os celeiros eram um conjunto de pavilhões obsoletos com chão de betão e largas vidraças quebradas onde se podiam ver milhões de esqueletos de pássaros mortos.

Decamarão e Demorgia deitaram-se dez vezes e dez vezes o Senhor os abençoou.
As dez criaturas tinham fartas melenas e ao final da tarde de rostos voltados para o sol agonizante pareciam bois almiscarados ao vento. Pareciam todos do sexo feminino mas três eram rapazes.

Epinefrina ou Adrenalina alcandorada sobre os montes rins sempre dera à nação filhos acelarados e sedentos de guerrilha. As suas filhas eram tesas e boas parideiras. As vacas de raça Alentejana sempre foram boas mães, pachorrentas, tetas generosas e um tom castanho nos modos que relaxa tanto como a languidez distendida das hastes.

Comia Häagen-Dazs encostada num muro do porto. Fixava o sol durante uns segundos e quando fechava os olhos via um anjo branco a flutuar dentro das pálpebras e falava com ele. As histórias encadeadas que vão puxando outras histórias numa estrutura espiralante ribossomática, como as sementes de um girassol. Haloarcula chamara ao seu anjo.

Buzatti e Potocki fumavam psicotrópicos deitados entre as giestas. Costumavam convidar Larissa para os seus passeios mas ela recusava sempre com altivez e frieza no seu olhar. Quando alucinavam crivavam as estrelas de palavras e frases que lhes incendiavam o entendimento a memória e a curiosodade:

“--Quarentena Czar
--Guardei a tua morada
--Todos temos segredos
--Crise nervosa
--Quatrocentas facas
--Toda a gente em baixo
--Umlaut Urlaub
--Gorgoroth
--Nemátodos”

Na ânsia do esquecimento que a náusea lhe provocava por aqueles dias, Goebbles ergueu paredes duplas que escondendo a podridão das alvenarias velhas. Perdeu área nas salas mas alcançou um maior controlo sobre os seus estados de espírito. Sim porque a ira mais básica é influenciada pelo ambiente. O estampido da fúria encapela-se perante a desordem e leva o homem acometido de ira a escravizar os seus súbditos.

A descrição dum homem tinge totalmente um ambiente. Hispano no seu recanto da enfermaria passou os meses que lhe haviam concedido de vida a esboçar na memória os homens com que se cruzara. Deu um estilo ao album como um mestre que desenvolve a técnica do Sfumato ou a Assimetria dos componentes. Falava com todos eles em mono-tertúlias pós-prandiais na sombra do alpendre. Vinham encontrá-lo as enfermeiras de rosto transfigurado e luminoso balbuciando frases disconexas com várias referências a Babilónia. Por ter desobedecido ao horário de deitar davam-lhe tabefes amigáveis com as costas da mão no cachaço.

O Sr. Olof um emigrante apaixonado pela luz do Bombarral era o encarregado da manutenção do serviço. A sua filha de pernas altas e narinas largas parecia uma égua graciosa. Olof usava o creme depilatório da filha para reparar falhas na alvenaria se lhe faltava o reboco.

Hispano teve um ataque no dia 13 de Maio pelas 2 da manhã depois duma mija noturna, a mão escorregou no Veet ainda fresco e bateu com o crânio numa mesa de vidro baixinha de estilo oriental. O peso das memórias era tanto que o vidro se pulverizou e as limalhas cravaram-se no corpo dos restantes companheiros do dormitório.

Tomás Manso

Convento dos Capuchos

palmas das mãos nestas pedras de musgo afago o teu fôlego neste claustro oh Deus do fresco da capela me arrepia o teu sopro do teu cla...