Manhã
Brisas de loiro damasco
Fruta descarnada que beijo
envolvido em vapor do duche perlado
As brisas que roubam as laranjeiras
escorrem pela sua pele
Espreguiça-te manhã
Nas poças do alpendre
Bocejem abelhas
pelo rosado horizonte
O feno verga-se ao passar do dia
O vento chora nas lassas cordas da roupa
raparigas de sorrisos polifónicas
lembram-me que existe mais mundo
além deste quarto além deste sono
Pela imperfeição perfeita da natureza
Deliro na vertigem de se será esta a mulher
mais perfumada de descanso e paz de alma
Na lentidão das manhãs suspendo a vida
nas contas desfiadas de um sonho
Tarde
No chuvoso lagedo
reflexo do céu de luto
assisto às primaveras floridas de sardinheiras
No parapeito e os lençóis lavados
pandos de tanto branco
são velas que partem destas tardes em Benfica
A selvajaria do vento frio avança
e trota no espaço o trovão
através da cidade esférica
na sedosa limousine
és o fulgor na bracelete metálica
no cetim indiferente nos lábios da lepra
tarde medonha no shopping
que só rima com Domingo
impedindo que o vigor se dissolva na sequiosa terra
uma convulsão de morte sem dignidade
um perfume despedido pelas ruas da cidade
Uma podridão que ferve nos vales
vai tingindo de podre as margens do céu
Noite
nasce nos ensombrados socalcos por decrépitas latadas
e escorre nas grossas raízes sedentas das águas do rio
altaneiros meandros dos rios sempre descansam os corpos
Perde-se o coração sempre nos redemoinhos dos rios bravos
por isso entre correntes e engrenagens vivemos
Enquanto acreditarmos no infinito
alguns rios serão tidos como insondáveis
das águas se evapora todo o mal
que da vontade em frémitos irreprimíveis
se derramem as caldas do movimento interior
e fujamos para casa
Revela-se o navio.
Libertas por fim da agonia dos cabos
respirem com um silvo as velas asmáticas
A noite é o rio e ansiamos mergulhar as quilhas no infinito
A parede calcária ressequida descansando até ao rio
tingido da calda de óxido milenar paredão que desenhas o Tejo
beijando infinitamente a superfície calma da água
nossos corpos desenhavam-se angulosos mais escuros que a sombra
“Oh margens de penumbra perpétua” já cantava o poeta
apodrecidos de negros limos cristalizamos entre os armazéns
engolidos somos todos a mesma noite