31.7.12
Sado-Loucura
Os retrovisores e janelas entreabertas
serpentinam a cidade de luz
Espelhos de mil brilhos líquidos as calçadas
cegam o meu caminhar
Eu comprazido no acasalar
Esvoaçante das pombas nos beirados
Absorvo a cidade com todos os sentidos
sou cisterna ávida
albergo o marasmo impávido
da gula espessa, morna e borbulhante
o frevo dançante da concupiscência das carnes
agita-se quando te cruzo oh Setúbal dos meus amores
São mel do nosso favo
E fibra da nossa cepa
E qualquer coisa longínqua
Maresia, maresia
O apartamento transparente gelo
prisão eterna de flores de plástico
em cada cómodo o candeeiro de plexiglass alveolado
tremelica lá fora o céu troveja
Deixo a sua luz penetrar
As pétalas dos meus olhos
A brutalidade dos meus apetites
Agarrou-me os braços atrás das costas
violentou-me a letargia
e arrastou-me ao velho manicómio
As pessoas admiram quem se enfia por túneis,
zonas labirínticas e ameaçam não voltar.
Vegetalizei do medo
Em mim magnetizada a dor
ou a vontade de sofrer
Beijei-me numa sombra de dúvida
dor, solidão e luz
fotografia dos primeiros dias
A caverna nacarada
Em que me sirvo e sorvo
era a cela mais longínqua em relação ao uivo do mar
No final das escarpas do Outão
Os tímpanos do oratório
reverberavam de mar
durante as matinais ensonadas
Do teu sopro gracioso alvor
Esconde o sereno arrebol do teu rosto
Oh sol glorioso que não te mereço
A exaustão imposta funcionava
como um tratamento de choque emocional antidelírio
além do sofrimento físico e da sensação de impotência
a impressão angustiante da morte iminente
Uma impressão que desperta defesa do Afogamento
Observava as mouras que se banhavam nos tanques
através do mata-cães, Oliveiras da tez prateada
Com este método, a mente, mantida a freio
é induzida a renunciar à sua arrogância
e logo se torna mansa e organizada
os maníacos com maior rapidez são tratados com a tortura
que com os medicamentos
Que os vivifique: o paúl de nebelina madrugadora e
O prado de sequeiro definhando ao sol dispendendo
os humores da alquimia do húmus
Disparo dali para fora com um apetite revigorado
Apostatei da seclusão e arrotei a plenos pulmões
os restos duma moral imposta pela loucura
Depois dos pilares descarnados
Pelo rancor ácido do mijo proletário
que sustentam a aposentadoria
das fábricas paradas
estendidos suam como lençóis matinais os baldios
até ao esfumado horizonte
silenciosas as orgulhosas asseiceiras
que se arrastam indomáveis nas planícies.
O Maninho estéril que se levanta infecundo ao crepúsculo
A congregação de baldios, solos incultos onde lavra a ignorância
respiram ao longo dos séculos sem donos
Avançam nessas terras as estevas a chupar o sal
das rochas brancas quebradas do sol
e chora a cornicabra sedada
do chá da alcachofra velha.
Sequios lavrados pelo pôr de sol vermelho
Calam-se perante a imensidão do céu.
Como as vagas as vozes enchem-se
Nos peitos do vento até ao mar
ali bem perto
Duas cascas de ouriços do mar
semienterradas marcavam o caminho sempre igual
entre as cearas de carrapatos
As colinas coroadas com excesso
inalcansáveis ermos de paz e ventania
que esmoleiam o sol aos que se arrastam
aqui em baixo
Por fim avisto o grande mar
e se ainda havia algum pesar
alguma sombra
mergulho no azul como cação jovem
e deixo que as ondas rujam sobre as minhas costas
eternamente
Necessita o espírito do sopro fulgurante
Não da luz potente,
do vento do vento incessante
9.6.12
Um Gestor
Tinha esculpido na cara um sorriso de
felicidade esfuziante. Piscava com serenidade os olhos por segundos e quando os
abria parecia que descobrira novas maravilhas no mundo. Um sorriso assim
rasgado cada segundo da existência devia ser exaustivo. Com as bochechas
arrepanhadas para trás parecia ainda mais bicudo o seu afilado nariz. Era
barrigudo de pernas magras e estendia com prazer a quem passasse nos corredores
a sua mão espalmada e suave. A pele das suas mãos era suave como uma criança
embora já fizesse a barba todos os dias. Demorava-se nos cumprimentos num
crescendo de alegria nervosa. Mas onde habitava tão fascinante criatura? Era
dono de uma padaria em Maringá MG que também vendia lenha e acessórios para as
lareiras, espigões de aço para ajeitar as brasas, tenaz metálica, fósforos
compridos, bufadeiras, pastilhas de resina, vassoureta ,pá metálica e outras
traquitandas supérfluas para os obcecados na arte. Também vendia lápis e blocos
que ele mesmo usava para fazer a gestão do estabelecimento. Era metódico com as
contas que garatujava com a sua mão suave envolvendo o lápis como uma aranha.
Tinha nojo de tocar nos cêpos com as suas delicadas mãos. Tinha pesadelos
quando cochilava depois de almoço na penumbra da loja com os líquenes e musgo e
as cascas cheias de crateras misteriosas das árvores, imaginava as aranhas,
lacraias e centopeias vermelhas que se escondem na humidade mais escondida dos
velhos troncos e adivinhava espíritos e criaturas maléficas escondidos nos
veios das árvores libertos fugindo com chiares e estalos no fogo das lareiras
assombrando os casebres pobres da região e espalhando a maldade pelas chaminés
e escondendo-se de novo nos topos frios das montanhas e descendo uivantes no
caudal das cachoeiras do rio Preto! Acordava sobresaltado e penteava o cabelo
oleoso e a barriga. Vivia num pequeno chalé nas traseiras da venda que olhava o
rumorejar incessante do rio. Em 66, um ano antes de terminadas as obras finais
da igreja de Maromba, uma tempestade fulminou a região. Os rios galoparam
desenfreados com vontade de destruir. Na bonança floresceram as lendas como a
do menino Moisés encontrado entre as lamas depois do dilúvio. Tive oportunidade
de conhecer o Moisés, um homem feliz, conhecido pelo seu fusca-taxi branco de
80 e pelo seu restaurante onde a especialidade é a truta. Ele mesmo tira a
espinha das trutas na travessa do cliente num gesto de paternidade bíblica. O
Brasil ainda está cheio destas lendas e mitos perdidos nos recônditos da
floresta.
Uma população extremamente religiosa foi
morar para Maromba em roças e pequenas fazendas. O que as levou a carregarem as
trouxas, burros e mulheres até aquelas altitudes? Hoje em dia toda a gente
trabalha para o turismo. Cachoeiras, vegetação e um clima peculiar atraem
hordas de brasileiros em busca de romances tórridos no meio do frio
transalpino. Os nababos no boteco mais seboso da praça central
Playlista 2
Exclusividade luxo, leve escoriação
na vontade um desejo um pico elevado
uma caixa de madeira repleta
dum tesouro por gerações e gerações
2
uma maca de hospital ouvia as suas
confidências
um suposto coma entre saldos e soros
oh doença rara fustiga-as
3
Morro do Angu
Comando do verdão
Favela do Xurraseterno
Morro da Graveola
Vai ter churrasco envenenado
Isso é guerra de G3
Guaraná morro manga rosa
Guaturim, birimboca
leva na bilha
na palma da mão
favela do Jegue
morro do esculacho
na escadinha do acordeão
Loca do tatu
na favela da pitanga
rola que noiz
bagulho bom é no verdão
o comando é fé no capeta
é o bonde
5-6-2012
Éo som proibidão vai pró inferno
Um pano amarrotado esvoaçando lá no alto
encovas a vida nas entranhas da cidade
4
Apple
Crumble Aple crumble humble humble humble
Details, travelling with her, peles
cabedal, unhas garras, blocos da vizinhaça
O teu mestre, o teu senhor é isto e aquilo
É o cordão de ouro donde pendes
Sou teu prisioneiro vem trazer-me feijão e
arroz (wine and bread)
sou uma estação no teu caminho
quero ler as linhas da tua mão
como um ciganinho
5
45 no travesseiro
e a bolsa sem dinheiro
Teu moreno das melenas de piche
Do peito duro e das noites sem limite
Atravessavam a noite escura e rija densa
entre eles
E ele quis contar a sua história
numa mão a cruz de madeira na outra a
cigarra do ônibus
O teu ciganinho de Buenos Aires que te
insufla o acordeão
6
Pelas ruas do crack te chamam
entra connosco nesta fornalha
em que as crianças dançam
as sombras cantam para loucura do rei
pelas ruas da mourama
desmanchavam o bezerro com voz de criança
Um clamor no beco escuro uma nova aliança
Com o senhor da rua
7
Oh pai porque cortas a árvore
onde eu brincava no quintal
chegou altura de plantares
meu filho, uma história real
como o teu irmão Leonardo
minha alma de gelo e o corpo corrompido
um farrapo de ácido no estômago corrompido
8
Tu sabes quem eu sou
sabes que não te posso amar
pelo menos da forma que sonhas
não sou sequer a distância
com que do abismo me olhas
nudez suave engasta-te no meu peito
desmaia-me com tua fragrância de criança
alastra-te pelo meu quarto
e beija-me beija-me beija-me
não, não, não. Deixa-me ser eu a beijar
abraçado ao teu respirar
tuas dores para mim são sombras
daquelas que eu senti
mas de ti me compadeço
e te ofereço
o bálsamo do meu amor
que é fragrante como aloés
purifica como mirra de ouro
e alegra como vinho inebriante
o viandante
Playlista 1
Cerveja que seja original
na piscina de plástico ou no piscinão de
Ramos
tanto faz
desde que não falte farofa
e a mulher do vizinho
global underground do sharam no dubai na cartola
e sai uma lingüiça pra mesa do meio
para amiga da minha mulher
as garotas as garotas com os hulahoops no
cangalho
e um som nigeriano agadez agadez
e um buço mal aparado
o calor o sol no cangaço
a tesão de mija no gramado
um churrasco bem avinagrado
Tá boladão meu caro Ed Motta tá um bolão
chama os vizinhos que ainda agora começou
este forró, eletronic moqueca soul
e a intensidade do óleo do dendê
no corpo torrado da mulata
pede uma dança uma bachata
Juan Luis chicoeia-lhe a anca
e um caroço frito de cajá
o colar de flores no pescoço
chanatas e um sol boladão
hoje se preparem que tem filè, alcatra
brigadeirão
Mais tarde se o ambiente aquecer um rock
romântico
uns spandau ballet ou japan ou uns
duranduran
vá lá e um bacardi ou um chá bem quente
com ginseng, raspas de gengibre ou
aguardente
a tensão sob nas veias a tensão sobe nas
velhas
vamos apagar as cortinas vamos ligar as
velas
em ritmo de rumba saimos à rua improvisamos
um chachacha
vai vai vai
“you were working as a waitress in a cocktail bar
when I met you” sim eu bebo no trabalho
e fico todo perturbado e babo-me em cima do
teclado
dont you
want me lady dont you want me ohohoho
I'd like to
take u home tonight
shes a
model and shes looking good
it only
takes a camera to change her mind
champagne
and mean and man
for beauty
we will pay
manschaft eletronics até tarde
patchuly em reverb som da excitação
fatos roixos camélias na lapela e
rougezinho nas buchechas do bumbum
pum pum pum
and we turn the page
the streets are empty e tu estás sozinho
espiralam os violinos que arrastam para um
abismo de melancolia
uma saudade inapagável oh pai segura a
minha mão olha o anjo
que te quer magoar. Que arda no inferno.
Desce sobre mim esse punhal
e mergulhe no esquecimento a minha geração
oie mamita linda e tua amor me cumbre la
piel
sinto amor já muero e sembre el amor de oro
por nas ciegas loiras de tu sexo amor mio
sinto que me muero tu existencia és la luz
de mi afeto
salto nas poças de água de todos os bairros
de boemia
Santa Teresa, Lapa, plaza de san Marcos,
Bairro Alto
Bairro gótico, los rosales, Chutney, Bab
boujeloud
Blake como
um shakespeare ou um Crack the ripper
passeando meditabundo pelas margens
smogosas do tamisa ou guanabara
talvez em busca dum melting pot
de feijão, arroz uma ou outra posta
de bacalhau e barbeque de cebola
all that I
now is I'm falling fallin fallin
there's a
limit to your love
ela chora toda a noite ela chora no
trabalho
mas não sabe o que arranca as lágrimas da
garganta
e pelo o rosto um mar espalha e a pele
assim é espelho
de mágoa atordoada uma placa para lugar
nenhum no meio da estrada
um suspiro dentro da casa abandonada
quem geme lá em baixo na escada onde se
guarda a tralha
que só se usa no Verão?
Guiar Noite Dentro
dormência na planura aveludada do alcatrão
luzes rasgadas no funil em contramão
asfixia veloz morte do trânsito morte do
rádio
Substituição das peças uma nova vida
Becos a fora entre galpões de estrepitosa
solidão
acendesse a luz néon no débil coração
os passos vão descalços no hall a criança
abandonada pisa descalça no chão
E quando fala o sono a razão um clarão
entrecortado surge em miragens
assume a dor a capacidade de atravessar
os corpos sem deixar marcas sem
sangrar. O embate final é nunca chegar
e a estrada é uma constante tensão
Lá Vem a Filha Dela
Olha olha lá vem a filha dela
curtindo o som de lata na mão
ela samba através da laje bela
e em suas ancas fixo a atenção
Florida morena do cabelo molhado
por entre o fumo do churrasco
numa paisagem de morros e laje
dança, dança até ser tarde
e quando a noite cair entre a favela e o
mar
só lingüiça de frango na brasa a chiar
aproxima-te desde barril de brahma
sussurra ao ouvido que és minha dama
arrasta-me graciosa meu corpo em chama
e deita-me com carinho na porta de casa
Mamão Italiano
Eu venho de italia do meio de uma sociedade nojenta em que
os ricos esmagam quanto podem e chego aqui ao brasil na primeira noite desço a
cozinha e pego um mamão com quase dois quilos e corto-lhe as pontas já meio
podres, depois corto uma tiras de casca e mordo diretamente a polpa do fruto
até às sementes sorvo o suco brando enjoado como uma flatulência açucarada com
adoçante, inclino a cabeça sobre a lixeira para que as gotas que me escorrem
pelo queixo não pinguem no chão. Ponho me a imaginar se algum animal exótico
terá roçado na casca do mamão, alguma serpente ou batráquio venenoso.
2.6.12
Amor Maternal
Deixa-me viver num recanto das tuas costas
habitar para sempre no refego das tuas
coxas
quero sentir sempre o teu maternal cheiro
andar nutrido no alimento do teu beijo
Que o teu calor seja o meu conforto
e o teu cabelo o meu esconderijo
meus pensamentos todo o dia para ti dirijo
é sempre o final do meu caminho o teu amor
Sinto me dançar entre leite e farinha
láctea
Rodopio em teu aroma morno
Caio inanimado na rede de teus lábios
No teu colo sou apenas criança
Sinto que o teu ventre ao meu ritmo balança
Envolve-me e afoga-me no teu sono
Sesta na Favela
Eu moro lá no alto da babilônia
entre ruas estreitas onde se perde a
memória
os sons dos vizinhos cada vez mais próximos
os conhecidos vão entrando sem cerimónia
Tanto aperto ameaça meu pudor
zonzo do ziguezaguear das ladeiras
o almoço, o sol da tarde, afogam, torpor
o som da cidade ao longe e o zumzum das
varejeiras
ando em pé mas durmo já esta sesta
cada passo um peso nas pálpebras que se
fecham
cada passo mais alto e do sol próximo
afasto a paisagem e bebo sôfrego a sombra
da entrada de casa um sofá de favela
estirado entre morros de preguiça bela
Passeio em Lisboa ou no Rio
Hoje nasceu um sol esplendoroso em todo o
Rio de Janeiro acompanhado de uma brisa fresca quase fria que me faz lembrar os
mais belos dias de Lisboa onde tudo cega de tanta luz, andar na sombra regela e
andar no sol dá calor e todo o ar é tão límpido que se destinguem perfeitamente
os detalhes de Almada ou Niteroi. Nesses dias os pássaros gritam com mais força
e os cheiros de almoço dançam com os de roupa lavada. Pena que sempre tenha de
ir trabalhar e não possa ir passear para o Chiado ou talvez para a Cinelândia,
perder-me entre os turistas, os vagabundos e os sortudos bem vestidos que
trabalham no Centro ou na Baixa.
Burros
A alma amanssa-se em brisas que não se
ouvem
sussurras Tu em brando fogo oh Santo
Espírito
aos nossos empedernidos rochedos frios
que alguns chamam coração corações de
talho de carne igual às outras bestas do
mercado
quem mo dera ter alado um sopro forte
quem me dera ser um pouco menos barro
e mais do sopro ardente incriado ser lingua
de fogo
e dócil como um burro bem tratado aos pés
do dono
um golfo de rosadas cítaras adelgaçando um
mantra
pegando fogo. Um monumento moldado em todas
as castas
na praça central a sibila dançava em torno
do burro
com tiaras, sininhos, lantejolas, pernas,
ventres, véus
rodopios, rosfolega passo a passo e puxa o
cabresto
árvores
Em família escondem a herança
que há-de ser mais forte que vós
em sombra e frescura sob as copas
adornada de chilreios de criança
Anéis de força concêntrica
teu corpo vestido de casca grosseira
refletem os sóis por dentro
vertem a dor da chuva por fora
Sussurram arfam enchem-se de vento
sugam entumescem embebedam-se de água
crestam estalam incendeiam-se no sol
mordem estrafegam subjugam as pedras e a
terra
violentam as pequenas brisas lavram os
penhascos
rebentam os caminhos e os cercados
invadem invadem os campos e construções
abandonados
As Meninas dos Seus Olhos
As meninas dos seus olhos
espreitavam como crianças
na entrada de uma tenda
de pálpebras pesadas de pregas
como recebendo um desconhecido
inquirindo com o orgulho sobranceiro
da filha do grande chefe
Praia Vermelha
Praia Vermelha uma chunha de mar
Entre os morros estreito
o céu mais dramático desenho
e lá ao longe dispersas ilhas preguiçosas
na costa uma aura militar
esmagada entre o granito
que refletiu todas as gerações
em dias de sol após noites de chuva
e que a neblina da mata atlântica
depois esqueceu
São ideias sem conexão
mas suscitadas pelo mesmo paredão granítico
um império imponente das selvas erigido
e a moral que como as águas do alto se
despenha
da mesma pedra a estátua e a mó se lavram
na mesma penha uns o seu topo alcançam
outros lá do alto se despistam
a mesma pedra no oceano se afunda
e afunda o peito entre as nuvens
e o sol de frente olha
do âmago da terra é filho crescido
O pão de açúcar acompanha lá do alto
as caravelas compadecido
dum povo que avança estarrecido
que no novo mundo a pisar se atreve
31.5.12
Quem dera ter tido um amor
Não tenho nenhuma paixão de longa data
que não vejo à décadas por que os nossos
passos
se separaram mergulhando na melancolia
de doces memórias a reviver um dia
não conheci a garota na força da juventude
abraçando-a numa prisão de loucura e
músculos
nem chorei depois sem forças a nossa
partida
porque não conheci, moça, mulher ou
rapariga
Mas abate-se sobre mim nos fins de tarde
quando a solidão aperta nos prados verdes
pardos
uma espécie de triste vontade que me afunda
de ter tido no passado um amor por quem
pudesse chorar
alguém a quem quisesesse de uma forma tão
profunda
que me levasse a implorar, implorar,
implorar
Brasil Fora
A estrada vai cruzando a mata por entre
montanhas
e vão se sucedendo as aldeias todas pobres
de cores garridas
com seus letreiros flashes de móteis e
igrejas evangélicas
as gentes sempre iguais derreadas
transportando secretas cargas
Cachaça e Tim Maia
Desce até à mureta da Urca vem afogar
as mágoas nas águas paradas da Guanabara
entre as barcas e os reflexos e o lixo e as
algas
desce depressão afogada em cachaça e Tim
Maia
vem chorar sozinho o final do Carnaval
vem chorar afinal mais um vice conquistado
pelo Vasco
vem chorar sem consolo só chorar, chorar,
chorar
e em lágrimas tanto desgosto afogar
É mais funda a tristeza de quem está triste
e convive no meio de tanta alegria
Carioca é um povo que assiste todo dia
à profunda turbação da alma que desiste
de ascender ao patamar da felicidade maior
se afoga sem amigos, sem paz e sem amor
Caganeira no duche
ao terminar o duche, já tinha a mão na
torneira
tive vontade de mandar um peido
naquele segundo de dilatação do esfíncter
sem fazer qualquer tipo de força para que o
ar saísse
senti algo que aflorava
não tentei prender, uma caganeira líquida
respingou todo o box
deixei a água fluir arrastando pedaços de
antigos jantares
fui limpando a superfície usando os pés
para empurrar a água cagada
enquanto lavava de novo o rabo com um sabão
branco.
Tempestades
Os espasmos do vento na cara da imponente
escarpa
escapam-se pelas paredes, varrem os valados
e caem pelos pelos abismos em vertigens
loucas
e ganham nova vida nas florestas de folhas
rasantes rasgam a superfície dos lagos
espalhando convulsas palmas e uivos bravos
sempre que as rugosidades vibram
ou os planos se abrem em rasgos largos
e os afunilamentos se desengolfam
brevemente
em amplos espaços de céus dormentes
e os sufocos expiram agudos se tornam
graves
e fazem ribombar nas frentes mornas
que sobem fétidas das tristes cidades
inclementes e luminosas tempestades
Desempregado
Uma espargata de dor bem esticada
Ao centro até que os côcos vertam
O leite macerado de uma vida inteira
Atrás duma escrivaninha lavrando
Os desígnios dum tal mestre de lavores
Ufano de cabeleira de chumbo sobre os teus
Ombros carrega o fardo de olhos postos
Na recompensa um fardo de palha
Empina-te ao sol de Verão e malha
O brio o brasão a honra da familia
Um carimbo na testa o orgulho o frontão
A ruína adivinha-se pelo cheiro a milhas
E milhas num sobretudo bem sovado
Pelos ermos da cidade ofega o desempregado
Calmaria
O mar brandindo sinas quase sem voz
Nos raios e trovões da noite escura
Traça um raio de lés a lés na carne
Um trago sequioso de água salgada
É a certeza de um caminho já provado
De estrela em estrela pelo abismo dado
Em que se perdemos a certeza
Foi dos olhos cegos pelo arpão da besta
Um par de cornos sentado na proa
O passadiço bem lustrado de joelhos escova
O cabrão como quem maneja o leme
Dorme nos vapores do brandy
E sente o peso da peste hasteada
Nos mares nauseabundos da calmaria
Salmo 4
Sangrem os olhos por trás dos vidros
e o vermelho nos vidros é o soco que fica depois
do acidente como um caco velho
gingando na ferrugenta cicatriz
o sol dura um segundo e um grito
rasga toda a pele ano após ano
o embate dos cinquenta deixa-nos sem fôlego
uma vida toda para isto
morremos tantas vezes
sempre com o sobressalto da primeira vez
a morte traz-nos jovens
mas o nosso corpo reclama pelo conforto da putrefação
Que a luz nos atravesse cheia de graça
Senhor leva-nos jovens
Salmo
Oh bela cruz que cravas na terra
E me gravas nos sinos
Hás-de-me lançar nas eras
Por altas serras rasando os pinos
E arrastarei até ti num beijo
Os loucos, uma ou outra espada
Umas crianças vestidas de branco
Pedaços de reis e mil velhas de joelhos
Tudo se queime na tua presença
Como mirra fragrante
não +e
Não é assim também a natureza?
Terra, terra, paus, raízes ervas pedras
Muito de raro uma flor no meio da água
Ou no céu de tanto sufoco talvez uma estrela
Bem definida no meio do nada
Que tudo a si atrai como algo que podemos chamar
Como no meio da palha uma palavra
Salmo
Roturei a terra com o rosto retesado
como cangalho o meu corpo
Seco ossudo burro terra pó e sol eu sou
Lavro dia a dia os campos do Senhor
24.5.12
Lusaglória
Passou já a nossa hora
e o sétimo dia dos nossos feitos
prolongou-se enfim pelos séculos
e durante o nosso sono
roubaram de nós o mar profundo
e nem assim despertou em nós a angústia
de tão moribundos
fedem a morto as palavras dos antepassados
e passamos a saudade nos sovacos
e ri das nossas quinas a europa sarcástica
Brás
Oh Chelas! Oh Chelas!
Esquecida num canto de Lisboa
és o bairro da igualdade
das vistas do Tejo nos altos dos prédios
a tua espinha de feira
um relógio semanal
uma fartura
ouvem-se os tiros, ouvem-se os negros
um romeno e um baiano
tacanhas avenidas que tentam separar a gente
tuas escolas tristes entre baldios
terra do mundo do continente africano,
europeu e americano,
terra de velhos fadistas
cruzam-te agora os calções hipoppers
terra da rtp do rock in rio e dos ciganos
canaviais ao vento um pobre relvado
terra modernista de células e bairros em letras
um céu de gaivotas imenso
cafés da gente feia e dos arranha céus compridos
das igrejas evangélicas e dos galpões vazios
uma pedrada na vidraça um barracão caído
filha de retornados
em fato de treino encarnado
velhas de sacos
conversas de velhos com velhos
e jovens conversando com drogas leves
cortiço antigo sem filhos
um dia correu em ti um rio e um carreiro de monges
beneditinos
escarpas que dás á cidade esboroadas à vista do aeroporto
cidade dentro da cidade altaneira e sombria
teus versos de miséria o governo silencia
tua vontade de chorar o povo desanuvia
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